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Sinopse

A história clássica do boneco de madeira que deseja virar gente numa versão musical em stop-motion. Ambientada na Itália entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, essa abordagem traz o fascismo como pano de fundo.

Crítica

A mais popular versão da história de Pinóquio, o boneco de madeira que deseja se tornar um menino de carne e osso, foi a lançada pela Disney em 1940. Em linhas gerais, essa animação que se tornou clássico ao longo dos anos é focada no aprendizado sobre a obediência. O protagonista apenas alcançava a felicidade, esta simbolizada pela realização de seu desejo extraordinário, ao compreender que deveria ter obedecido o seu criador desde o princípio. Se ele não tivesse mentido para Gepeto, provavelmente nada de ruim aconteceria. Portanto, uma abordagem moralista, na qual os caminhos para se chegar a certos e errados estão bem definidos. Pinóquio por Guillermo del Toro é a mais nova interpretação dessa história lançada pelo italiano Carlo Collodi nas décadas finais do século 19. Para começo de conversa, é preciso destacar a importância da busca por personalidade própria. Sim, pois a nova animação (agora em stop-motion) toma caminhos bem diferentes das suas antecessoras, em diversos sentidos, ainda que mantenha intactos alguns pontos de contato com essas obras conhecidas. Para começo de conversa, vemos Gepeto (voz de David Bradley) vivendo feliz ao lado do filho Carlo antes de ele ser morto pela queda de uma bomba aérea numa igreja. O efeito colateral estúpido da Primeira Guerra Mundial é o ápice dessa introdução em que a ternura vai aos poucos virando melancolia.

Os cineastas Guillermo del Toro e Mark Gustafson definitivamente não desenham uma fábula infantil, tampouco estão preocupados com a geração de lições moralistas a crianças travessas. Em Pinóquio por Guillermo del Toro há sugestões visuais bastante intrigantes que provavelmente vão reverberar melhor na fatia adulta da plateia (o público-alvo da produção). Um desses momentos é Gepeto desesperado tendo rompantes de Dr. Frankenstein ao gritar contra uma tempestade enquanto golpeia um pinheiro: “vou reconstruir você, Carlo, vou fazer um novo filho”. Embora o filme não se aprofunde como poderia na complexidade dessa construção de uma figura substituta, do duplo que não anuncia a morte, mas que visa mimetizar alguém que morreu, essa cena é o suficiente para entendermos que o terreno trabalhado aqui é bem menos pueril. Outro momento de destaque é quando Pinóquio (voz de Gregory Mann) questiona os motivos que levam as pessoas a gostarem da escultura de Jesus pregado na cruz e a desgostarem dele, uma vez que ambos são feitos de madeira e pelo menos homem. Os cineastas lançam mão dessas inserções inquietantes, moldando a sombra dos ícones e discutindo subliminarmente aspectos essenciais de uma sociedade então tomada pelo fascismo. Ambientar a trama na Itália comandada por Benito Mussolini, entre guerras, é das grandes sacadas dessa bela empreitada.

Pinóquio por Guillermo del Toro tem todos os principais ingredientes que fizeram de Pinóquio famoso animação dos anos 1940 da Disney: o marionete desejando ser gente; o grilo falante; o idoso enlutado (como bem mais ênfase nesse estado de espírito, diga-se de passagem); o aproveitador que deseja capitalizar sobre a excepcionalidade de Pinóquio; o incidente inusitado com um monstro marinho, etc. Porém, também existem diferenças fundamentais à mudança do tom, inclusive, da mensagem a ser defendida como a “moral da história” final. As versões infantis encaram a obediência como o certo a ser feito, mas essa disposição muda drasticamente quando a trama está na realidade fascista em que a obediência se transforma num atributo do status quo. Quem pressiona Gepeto para seu novo filho frequentar a escola e não sair da linha é o podesta da região (voz de Ron Perlman) – uma espécie de subcomandante fascista do local. Diante de um menino de madeira inclinado ao descumprimento das normas, esse sujeito logo se alvoroça para injetar “responsabilidade” no pequeno. Acatar (ou não) as orientações de Gepeto geram circunstâncias e dinâmicas mais cinzentas do que simplesmente as que fixam certos e errados nas demais versões. Não se trata de fazer A para ser enxergado como A, pois a noção de reverência a autoridade está posta em outro lugar simbólico, um menos determinista

Outra alteração fundamental, e que tem a ver com essa complexidade do obedecer em tempos fascistas, é a substituição da sequência dos meninos travessos virando burros (reforço do moralismo) pelo acampamento infantil em que os recrutados mirins apreendem a guerrear precocemente. A guinada é radical, pois inverte o discurso principal. Antes a mensagem era “meninos, não sejam rebeldes, pois senão...”. Nesta nova versão, a rebeldia é justificada pela emancipação, ou seja, os meninos devem causar a revolução ao ter consciência de que o contrário (engrossar as fileiras do fascismo) é muito mais errado do que suas traquinagens. O equilíbrio traz muito mais nuances a esse aspecto ideológico, pois nem romantiza a insurreição completamente e tampouco a invalida como uma força transformadora. Pinóquio por Guillermo del Toro também ganha pontos preciosos em virtude do design de produção assinado por Guy Davis e Curt Enderle. Saem as fadas comportadinhas das roupagens necessariamente infantis e entram as criaturas cujo aspecto mitológico é reforçado pela inserção das visitas de Pinóquio ao mundo dos mortos (outra novidade). Para quem (assim como o autor deste texto) estava pensando “lá vem outra versão lenga-lenga”, aconselha-se a deixar um pouco os preconceitos de lado a fim de aproveitar com menos barreiras a interpretação corajosa de Guillermo del Toro e Mark Gustafson para uma história que já foi contada tantas vezes antes. Todavia, nunca assim.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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