Crítica

A família Schurmann ganhou notoriedade graças às suas expedições marítimas, como aquela em que completaram a volta ao mundo refazendo o trajeto idealizado pelo navegador português Fernão de Magalhães. A aventura rendeu o documentário O Mundo em Duas Voltas (2007), dirigido por David Schurmann, um dos filhos do casal de velejadores Vilfredo e Heloísa Schurmann, também responsável pela série documental Expedição Oriente, exibida na TV aberta. Em seu novo trabalho como cineasta, Pequeno Segredo, David mais uma vez se volta ao seu universo familiar, porém em chave ficcional, adaptando o livro homônimo escrito por sua mãe. A trama se baseia na história real de Kat, filha adotiva dos Schurmann, nascida na Nova Zelândia, que faleceu no ano de 2006 devido a complicações decorrentes do vírus HIV.

pequeno-segredo-papo-de-cinema-01

Na comparação com sua primeira incursão pelo cinema de ficção – Desaparecidos (2011), um desastroso experimento de terror no estilo found footagePequeno Segredo representa um avanço para David Schurmann, que aqui comanda uma produção mais ambiciosa e evidentemente coberta de maiores recursos: das filmagens em diversas locações brasileiras e neozelandesas aos profissionais de renome tanto no elenco quanto na equipe técnica, como o roteirista Marcos Bernstein e o compositor Antonio Pinto. Para contar sua história, o diretor opta por uma estrutura narrativa dividida em três núcleos que se iniciam em esferas temporais distintas, convergindo ao longo da projeção. Na primeira, acompanha-se o dia a dia de Kat (Mariana Goulart), prestes a completar 13 anos, ao lado de Heloísa (Júlia Lemmertz) e Vilfredo (Marcello Antony). Na segunda, aborda-se o passado dos pais biológicos da menina, o neozelandês Robert (Erroll Shand) e a brasileira Jeanne (Maria Flor). Por fim, temos o arco de Barbara (Fionnula Flanagan), mãe de Robert que vive na Nova Zelândia.

De imediato, essa proposta estrutural gera um desequilíbrio dramático, pois os arcos não possuem o mesmo peso, sendo o que envolve a personagem de Flanagan aquele mais prejudicado por sua importância reduzida. As idas e vindas do foco narrativo também comprometem a construção mais sólida dos personagens e de seus relacionamentos, como o de Robert e Jeanne, que poderia ser mais bem explorado não fosse apressado em diversos momentos. As atenções ficam mesmo centradas na dinâmica entre Kat e Heloísa, fazendo com que as figuras ao redor das duas sejam relegadas a um papel quase decorativo, em especial Vilfredo, que pouco oferece para que Antony desenvolva o personagem. O mesmo valendo para o pai de Robert. Das figuras masculinas do longa, o engenheiro neozelandês é mesmo a única com algum destaque, fazendo com que Erroll Shand se esforce em atuação bilíngue.

pequeno-segredo-papo-de-cinema-03

A direção de David Schurmann, ainda que tecnicamente competente, se mostra extremamente convencional e sem traços autorais visíveis, exceção feita a raros lampejos de criatividade estética – como a cena da baleia na praia ou a da banheira, ambas protagonizadas por Maria Flor. Mas são apenas fagulhas de frescor em um trabalho marcado pela previsibilidade. Não é preciso conhecer previamente os fatos para antever os acontecimentos que são apresentados, como o próprio “segredo” do título, que não é entregue com o impacto esperado. Essa sensação se estende também às resoluções dos detalhes que movem a trama, como os do cotidiano de Kat no colégio: as colegas que praticam bullying com a garota, a paixão platônica por um dos meninos da classe, a amizade com a única outra aluna “renegada”, etc.

Em seu primeiro trabalho, a atriz-mirim Mariana Goulart emana doçura, mas ainda oscila bastante, fraquejando em alguns dos embates mais exigentes no aspecto dramático, desfavorecida também por alguns diálogos que não soam naturais para uma criança. A mesma fragilidade na transposição dos personagens da vida para as páginas e, posteriormente, para a tela pode ser notada em Barbara. Pois até uma ótima atriz como a irlandesa Flanagan encontra dificuldades para se sobrepor ao estereótipo caricatural da mãe superprotetora/sogra detestável e cheia de preconceitos. Já Maria Flor, outra intérprete de talento, tem melhor sorte com Jeanne, ainda que não convença completamente como uma nativa da região amazônica – praticamente sem sotaque ou outra característica particular na composição.

pequeno-segredo-papo-de-cinema-02

A grande responsabilidade de carregar a trama fica mesmo com Júlia Lemmertz, afinal, a história foi narrada no livro sob a perspectiva de Heloísa, logo, sua voz é também aquela que guia o longa. E a atriz cumpre tal função com eficácia, mesmo lutando contra os lugares-comuns que povoam suas falas. Em trabalhos de cunho tão pessoal e íntimo, sempre é um desafio para seus realizadores não terem uma visão idealizada sobre aquilo que desejam transmitir. Obviamente, não há como replicar a experiência aos espectadores na mesma intensidade que a vivida pela família. De qualquer forma, pelas ferramentas à sua disposição, David Schurmann teria como conseguir uma aproximação emocional maior que não ficasse restrita ao recurso da trilha sonora carregada que busca as lágrimas desde o primeiro plano. Analisado como produto cinematográfico, Pequeno Segredo tem seu potencial diluído entre os mais diversos clichês, resultando num drama comum, que não se torna especialmente marcante para aqueles não envolvidos diretamente nos fatos descritos.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
avatar

Últimos artigos deLeonardo Ribeiro (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *