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Sinopse

Três meninas e um menino. Às vezes, bons amigos. Noutras, amantes. Émilie conhece Camille que se sente atraído por Nora, que se cruza com Amber. Uma ciranda de afetos, expectativas e amores na capital francesa. 

Crítica

Além das questões estéticas e de linguagem, a Nouvelle Vague – movimento de vanguarda que revolucionou o cinema francês nos anos 1950/1960 – trouxe o até então raro destaque à juventude como uma estratégia de renovação. Boa parte dos protagonistas dos filmes de François Truffaut, Jean-Luc Godard, Éric Rohmer e cia é formada de pessoas descobrindo (ou prestes a descobrir) as dores e as delícias da vida adulta e, mais do que isso, tentando construir uma nova maneira de ser adulto. Foi uma geração que se rebelou contra a ideia de que o sujeito vale o quanto produz, essa noção predominante no pós-revolução industrial. E, para tanto, os seus membros questionaram os pilares da sociedade mais conservadora (família, trabalho, religião, escola, etc.). Então, pode-se dizer que a Nouvelle Vague capturou um momento histórico em que a juventude reivindicou de peito aberto o protagonismo social, transformando esse impulso em poesia e/ou libelo político. Tendo em vista a natureza de documento de época inerente aos filmes, Paris, 13º Distrito ganha pontos por possuir uma equivalência insuspeita (mas consistente) com a nova onda do cinema dos anos 1950/1960. Sim, pois seu autor, Jacques Audiard, demonstra curiosidade pela atual configuração da juventude francesa. Seu olhar permanece detido na experiência de imigrantes e/ou dos franceses filhos de homens e mulheres que antes imigraram à Europa. E esse tipo de personagem/viés não é uma novidade na carreira do cineasta consagrado.

Jacques Audiard apresentou o retrato intenso da experiência de um estrangeiro em O Profeta (2009), priorizando a revolta de um rapaz muçulmano numa prisão francesa. Um pouco adiante, pesou a mão na exploração de uma miséria estetizada em Dheepan: O Refúgio (2015), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, uma história de pessoas que chegam à França ao fugir da guerra civil do Sri Lanka. Em Paris, 13º Distrito o registro é completamente diferente. Estamos diante de uma agridoce crônica de costumes que não parte do estrangeirismo, mas que o coloca organicamente no centro de uma ciranda de amores e desamores. Filmado num belo preto e branco (fotografia de Paul Guilhaume), o longa-metragem pode ser equiparado a alguns exemplares da Nouvelle Vague, basicamente, por essa vontade de radiografar a juventude atual num país em constante transformação. E as semelhanças estão também na abordagem da intimidade, no desejo manifestado de compreender aquelas pessoas e dar-lhes voz, não apenas de utilizar as suas experiências para consolidar teses e/ou criar um discurso. A diferença é que Audiard faz isso beirando os 70 anos, ou seja, não está refletindo sobre a própria geração. No filme, são três os protagonistas: Émille (Lucie Zhang) é filha de taiwaneses e trabalha como atendente de telemarketing; Camille (Makita Samba) é professor de liceu, mas quer virar um docente universitário; e Nora (Noémie Merlant) é a pós-adolescente vinda do interior.

Os três personagens principais de Paris, 13º Distrito têm certas características em comum. Uma delas é a sensação persistente de deslocamento, mais precisamente um sentimento latente de não pertencimento. A impetuosa Émille parece querer sufocar suas dificuldades afetivas pelo acúmulo aventuras sexuais. E é bonito como, ao acompanha-la pelas ruas da região à esquerda do Rio Sena (um bairro tradicionalmente chinês), Jacques Audiard faz questão de enfatizar a atualidade da paisagem humana da Cidade Luz. Boa parte das pessoas que moram na vizinhança possuem traços orientais, algo sublinhado pela câmera que, assim, pretende capturar melhor a diversidade desse retrato urbano do presente. Camille é um homem negro que ajuda a compor o multiculturalismo tão importante ao longa-metragem. Mas ele não existe apenas por seu fenótipo ou por conta da cor de sua pele. Seu comportamento traz à tona questões subjetivas, tais como a (falta de) responsabilidade afetiva. Por fim, Nora surge na trinca como a forasteira francesa, aquela que sai do interior para perseguir a verdadeira vocação na capital. Porém, ela é obrigada a deixar o sonho por conta de um mal-entendido que logo se transforma num sintoma dramático de uma coletividade agressiva e doente. Assim como Émille e Camille, ela dá um passo atrás. E faz parte desse diagnóstico geracional o fato dos três, em algum momento, desempenharem funções profissionais provisórias, tais como garçonete e corretores.

Além da Nouvelle Vague, Paris, 13º Distrito tem pontos de contato com Ela Quer Tudo (1986), o primeiro longa-metragem dirigido pelo cineasta norte-americano Spike Lee, no qual o preto e branco e as dinâmicas afetivas também servem como pilares de uma crônica social ora leve, ora ácida. Jacques Audiard se vale de uma estrutura muito tradicional (A gosta de B que, por sua vez, gosta de C), a partir da qual evidencia as dificuldades emocionais dessa geração que não encontra melhor sorte na área profissional. Também é possível estabelecer uma ponte com Frances Ha (2012), no qual novamente o preto e branco é utilizado como filtro de uma juventude em marcha meio cega rumo à vida adulta. Mas, no filme que foi escolhido para o 12º Festival Varilux de Cinema Francês até a noção de “juventude” é expandida (Nora, por exemplo, afirma ter 30 anos), o que corresponde à lógica muito contemporânea dos duradouros pós-adolescentes. Há algumas simbologias um tanto óbvias – como a avó acometida por uma doença degenerativa (o passado morrendo e levando consigo algo vital) – , mas no geral o filme cumpre muito bem a tarefa de desenhar uma geração multi(cultural/étnica) dentro de uma França refletida pela imigração. E para isso, Jacques Audiard não constrói um manifesto panfletário repleto de dados retóricos, mas observa personagens ambivalentes que deixam à mostra tanto os seus medos quanto as suas dificuldades para elaborar e depois conviver com os próprios desejos e deveres.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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