Crítica
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Sinopse
Como os moradores de Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde vivem as experiências de separação e distância? Uma investigação sobre a percepção do tempo e do espaço, reunindo as dimensões do corpo e da memória.
Crítica
Diferentemente da literatura, arte que precisa da imaginação e pode sugerir de várias maneiras poéticas o intangível, o cinema é uma manifestação artística que tende às definições. Ao se deparar com “fulano era assim ou assado”, o leitor tem margens para fantasiar, mesmo diante das descrições minuciosas. Já o cinema mostra objetivamente que “fulano era assim ou assado”, podendo ser permeável e poroso de outros modos. Então, dá para imaginar o tamanho do desafio ao qual o cineasta Marcos Pimentel se impôs ao tentar filmar a ausência em Os Ossos da Saudade. Aliás, é curioso esse título, pois, em tese, a saudade não precisaria de esqueleto (físico) uma vez sendo sensação (intangível). Em busca dessa ossatura da ausência, o realizador elege como espinha dorsal a nostalgia de homens e mulheres em trânsito por países de língua portuguesa. Não à toa, uma das primeiras sequências do documentário é a que engloba vários planos de embarcações enferrujadas pelo tempo, encalhadas e, portanto, sem mais desempenhar a função à qual foram feitas. Há um valor simbólico nisso, pois sem fazer qualquer explicação, o filme conjura a História das navegações que expandiram domínios portugueses por meio do colonialismo. Aliás, a utilização de imagens evocativas é o principal trunfo desse documentário muito bonito visualmente, que se peca em algo é na dificuldade para sintetizar certas coisas.
Por imagens evocativas, leia-se aquelas cuja beleza não é apenas estética, mas dramática e retórica. Assim como as embarcações carcomidas pela oxidação são um símbolo do anacronismo das mentalidades eurocêntricas, as tomadas da água do mar chicoteando a praia, as do vapor subindo da zona de rebentação, as das formações geológicas milenares, as das árvores parcialmente submersas, as dos prédios abandonados, todas elas servem à expressão da melancolia e da saudade sentidas pelos personagens. Levando em consideração os contornos do cinema de ambições nitidamente comerciais – cada vez mais acelerado, picotado e superficial – chega a ser um ato subversivo a extensão dos planos em Os Ossos da Saudade, justo para que tenhamos margem à meditação e ao encontro dessas possibilidades que surgem da soma entre as falas e essas imagens evocativas. E a História é outro elemento imprescindível desse documentário selecionado para a mostra competitiva do 25º Cine PE. Ela é a herança deixada para trás pelo tempo, um capital também afetivo que converte memórias em nostalgia. E o filme faz questão de equivaler em imagem o que as pessoas estão dizendo. Não como uma legenda que expressa exatamente o que a fotografia contém, mas como suporte capaz de aprofundar a compreensão. Pena que há tantas reiterações e uma dificuldade de encontrar pontos de corte.
Os Ossos da Saudade repete temas e abordagens – a água como catalisador, a ferrugem como arauto da finitude, a natureza como moldura e a saudade como companheira dos que decidem se desenraizar em algum instante de suas vidas. Sim, pois todos os personagens escolhidos estão entre territórios, vivendo em limiares reais, imaginários e psicológicos. Um deles fala incessantemente dos familiares mortos enquanto caminha pelas ruínas e por estradas, assim sugerindo que está entre passado e presente. Há outros que moram em Moçambique, Angola ou Cabo Verde e sentem saudade da vida anterior no Brasil. Também são observados os brasileiros sonhando com o retorno à América do Sul depois de anos de cotidiano africano. Mas, o que poderia se tornar um infinito muro das lamentações e lamúrias melodramáticas, acaba servindo a essa construção poética constituída de ideias, conceitos, sentimentos e abstrações. E o filme se beneficia muito do valor plástico da fotografia a cargo de Matheus da Rocha Pereira. Essa conjuração de uma sensorialidade fundamental passa pela habilidade ao lidar com texturas, cores e formas diferentes. Portanto, mesmo que pareça uma prova de resistência, especialmente à plateia mais acostumada a estímulos constantes, a produção precisa ser enaltecida, ao menos, pela disposição de desacelerar e convidar o espectador à contemplação.
Como de praxe nos filmes com vários personagens, em Os Ossos da Saudade alguns acabam sobressaindo. Some a isso o fato da narrativa ser ligeiramente prolixa e restará a dúvida quanto à necessidade de tantos depoimentos e performances parecidas. Será que a professora de dança africana e a capoeirista afro-brasileira não desempenham uma função narrativa semelhante? Elas são mulheres divididas entre territórios colonizados por europeus. Será que a professora residente no continente africano, mas saudosa da comida da cidade mineira de Teófilo Otoni, não expressa as mesmas coisas que outros homens e mulheres, assim se tornando uma repetição? Especulações à parte, o efeito do documentário certamente pode ser ampliado de acordo com o tamanho da tela, a qualidade de projeção e a potência do som. Sim, pois as nuances de texturas e densidades, a intensidade dos movimentos das águas, a imensidão das paisagens “abraçando” corpos, tudo isso tende a ganhos significativos se nas melhores condições de som e imagem. Mesmo que tenha “vários finais” – sabem quando os filmes dão pinta de acabar, mas não acabam? –, o resultado é um poema audiovisual sobre geografias humanas, históricas e territoriais. Nele, por exemplo, água e vulcão são metáforas poderosas por sua dupla natureza. A primeira sugere imediatamente calma, mas pode ser violenta. O segundo é lido como violento, mas oferece a calmaria. Como a saudade que aquece o coração, mas que pode machucar.
Filme visto durante o 25º Cine PE, em novembro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 6 |
Francisco Carbone | 6 |
Alysson Oliveira | 7 |
Rodrigo Passolargo | 8 |
MÉDIA | 6.8 |
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