Crítica
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Sinopse
Físico da Universidade da Califórnia, nos EUA, o cientista norte-americano J. Robert Oppenheimer teve papel crucial para o desenvolvimento da bomba atômica utilizada num momento crucial da Segunda Guerra Mundial.
Crítica
Muitas vezes, o que é sugerido parece ressoar com mais força do que aquilo que tornado explícito. Esta é uma verdade ignorada por Christopher Nolan na realização de Oppenheimer, sua alardeada cinebiografia do homem que até o fim dos seus dias carregou consigo a alcunha de “inventor da bomba atômica”. Para se ter uma ideia, a última fala do filme – e isso não chega a ser um grande spoiler – é o próprio, interpretado por Cillian Murphy, declarando (mais à audiência no lado de cá da tela do que para si mesmo): “criei algo capaz de acabar com o mundo”. Sério? Havia alguém na sala de cinema (ou no sofá de sua casa) que ainda não tinha se dado conta disso? E esse tipo de reiteração de obviedades acompanha os acontecimentos dispostos em cena durante os extensos – e atordoantes – 180 minutos de projeção. Nolan tinha em mãos uma figura controversa e problemática, uma pessoa que, em nome da paz, foi manipulada a conduzir a elaboração do mais mortal artefato bélico de todos os tempos. E ao invés de deixar que os atos falassem por si mesmos, opta por colocar nas falas daqueles ao seu redor uma repetição insistente e incômoda que se faz presente apenas para reforçar o que está sendo visto. É como se o diretor não sentisse segurança nas impressionantes imagens por ele mesmo concebidas. Uma falta de confiança não apenas no público, mas também em si.
Um dos momentos mais intrigantes de Encontros e Desencontros (2003), longa que deu à Sofia Coppola o Oscar de Melhor Roteiro Original, é o seu desfecho, quando os personagens interpretados por Bill Murray e Scarlett Johansson se despedem com sussurros nos ouvidos um do outro, falas essas incompreensíveis ao espectador. A esse, portanto, coube apenas imaginar o que foi dito, e esse desfecho compartilhado fez da experiência de cada um algo único, uma vez que todos os finais se tornaram possíveis. Em Oppenheimer, também há uma cena em que alguém diz a outro uma fala que não chega a ser ouvida, o que basta para que um terceiro passe o resto do filme indagando (assim como quem os assiste) o que teria sido dito. Pois então, como se não bastasse as conjecturas levantadas, o cineasta, no momentos derradeiros de sua trama, volta a esse momento específico, assumindo um outro ponto de vista e expondo no mínimos detalhes o tal diálogo. Ou seja, dúvidas não são permitidas. No cinema de Christopher Nolan – e, em especial, em sua abordagem sobre a vida de Julius Robert Oppenheimer – o esforço está em esclarecer quaisquer passagens borradas de sua trajetória, mais preocupado em fazer dele uma vítima do que em vê-lo como parte fundamental de um rumo do qual não se é mais possível retornar.
Através de duas linhas narrativas desenvolvidas em tempos específicos, mas desenvolvidas de modo convencional, Nolan (que também é roteirista) passa a contar não apenas a história de Oppenheimer, o físico norte-americano que, após um período de estudos na Europa, retornou ao seu país de origem para dar início a um projeto muito visado que resultaria na arma “capaz de por um fim em todas as guerras”, mas também acompanha os desenlaces políticos do almirante Lewis Strauss (Robert Downey Jr., incapaz de se dissociar dos cacoetes de sua performance mais famosa, o Tony Stark/Homem de Ferro da Marvel). Este homem chegou a liderar grandes iniciativas relativas ao uso da energia atômica pelos Estados Unidos, como a AEC (US. Atomic Energy Comission), além de ter sido o responsável direto, enquanto secretário de estado, pelo desenvolvimento de armas nucleares e pela própria lógica por trás do uso dessa política pelo país (e, como consequência, por todo o planeta). O que o enredo se ocupa, no entanto, é em comprovar que, além dessas atividades e ocupações, maior ainda era o seu ego. Essa tomada de direção, além de ser reducionista – a impressão é que a perseguição que se deu em torno do legado de Oppenheimer seria, se não responsabilidade dele mesmo, teria sido do que por ele não foi feito, de uma ausência de luta e protesto. Quando o certo é que foi mais uma peça de um tabuleiro maior.
Há outras questões incômodas nesse retrato que merecem ser observadas – até porque, devido a insistência com que se manifestam, é quase impossível ignorá-las. O elenco é inacreditável, mas também causa espanto quantos talentos são desperdiçados. De Matt Damon (também vítima de uma condução mais precisa, visto que se mostra despreocupado em recair em soluções por ele mesmo exploradas em desempenhos anteriores) a Tom Conti (sem espaço para ir além da caricatura de uma figura tão impactante quanto Albert Einstein), de Jason Clarke (visto sempre no mesmo cenário) a Dane DeHaan (preocupado mais com sua expressão facial do que com seus diálogos), de Rami Malek (que entra mudo e sai calado em duas das três cenas em que aparece) a Gary Oldman (tão cheio de maneirismos como Harry Truman como na composição que ofereceu como Winston Churchill em O Destino de uma Nação, 2017), há ainda alguns que são mera distração (Josh Hartnett? Alden Ehrenreich? Matthew Modine?) e outros que estão, literalmente, fazendo figuração (Jack Quaid, Alex Wolff e Tony Goldwyn, difícil apontar quem tem menos a colaborar).
Porém, se algumas participações são desperdiçadas (Kenneth Branagh chega apenas para dar peso ao tipo que tem em mãos, o cientista Niels Bohr, um dos gurus de Oppenheimer; ou Casey Affleck, que tem um trabalho de construção bastante sutil desprezado por uma edição que apela a um discurso expositivo e desnecessário), outras são ainda mais problemáticas, como o olhar dedicado às mulheres do protagonista, um viés tão enviesado que por momentos se aproxima da misoginia. Afinal, tanto Florence Pugh (Jean Tatlock, a primeira namorada) quanto Emily Blunt (Kitty, a esposa) enlouquecem (em alguns momentos, de forma literal) apenas por serem colocadas na presença presença de Oppie – e vamos concordar, Cillian Murphy pode ser tudo, menos um homem que exala sexualidade. A ele, que chega a ser chamado com todas as letras de “mulherengo”, nenhum esforço ou carisma é exigido. Mas, ao desprovê-las de contexto ou motivações – basta ele surgir na vida delas para que abandonem tudo, interesses ou envolvimentos prévios, para se jogarem ao seus pés – as oferece não mais do que a condição de adereços, como se influência alguma tivessem exercido no desenrolar dos acontecimentos.
Mas nem tudo são tropeços. Há acertos inegáveis, e se for para continuar nesse mesmo âmbito das atuações, é possível afirmar com tranquilidade que Cillian Murphy – um ator sempre elogiado, porém poucas vezes saudado como de fato tem feito por merecer – tem aqui uma das melhores atuações de toda a sua carreira. O homem que coloca em jogo, tão controverso quanto incisivo, é perturbado pelo que fez, mas também por tudo que o instiga a ir adiante. E ao contrário de muitos que o circundam – que a todo instante insistem em chamá-lo de “gênio”, “incrível” ou “excepcional”, como se isso já não fosse de conhecimento da plateia – opta por se resguardar na observação e numa análise distanciada dos acontecimentos que provoca. Eis uma reação que privilegia o racional, sem que, no entanto, um lado emotivo seja desprezado. Esse estudo, assim como o assustador trabalho de som – se a intenção foi provocar a mesma sensação de se estar dentro de uma bomba prestes a explodir, o resultado é mais do que bem-sucedido – são os pontos altos de uma obra satisfeita em explorar o caminho, sem dedicar a devida atenção aos eventos que os levaram até ali – e muito menos os reflexos após tal passagem. E ao se encerrar em si mesma, confirma-se como uma obra fria, congratulatória diante de tantos excessos, mas incapaz de dar um passo além do óbvio já esperado.
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