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Sinopse

Hiroo Onoda, jovem treinado em inteligência militar que descobre uma filosofia contrária ao suicídio para reparar a honra ferida: a ideia é permanecer vivo a qualquer custo e completar a missão. Enviado a um pequeno vilarejo das Filipinas antes da iminente chegada das tropas norte-americanas, ele precisa travar o avanço das guerrilhas locais até que seus compatriotas japoneses cheguem. Mesmo depois do Japão anunciar a sua rendição durante a Segunda Guerra Mundial, ele continuou sozinho uma guerra por mais de 10 mil dias.

Crítica

Dentro do discurso militarista, estar disposto a “morrer pela nação” é algo considerado como a última fronteira do patriotismo, uma espécie de prova irrefutável de valentia. E isso tem a ver com a tentativa de dar algum significado superior ao serviço num conflito, por exemplo. Afinal de contas, não fosse essa abstração envelopada pela honradez e por glórias intangíveis, por que cargas d’água alguém defenderia os interesses da pátria e colocaria esse empenho acima da própria segurança individual? No Japão, desde tempos imemoriais a integridade dos soldados (e antes, a dos samurais) era mensurada por noções como valentia e vergonha. Uma vez derrotado ou deslegitimado dentro do jogo bélico, o soldado/samurai tirava a própria vida em sinal de vergonha por não ter conseguido êxito. Então, está incrustada desde muito cedo no imaginário da Terra do Sol Nascente essa ideia do guerreiro que falhou ou descumpriu as suas atribuições como alguém que precisa morrer para reparar a sua dívida. Onoda: 10 Mil Noites na Selva começa durante a Segunda Guerra Mundial e tem como protagonista o oficial Hiroo Onoda (vivido na juventude por Yûya Endô e na maturidade por Kanji Tsuda). Treinado dentro de uma filosofia diferente, ele foi cunhado no princípio da sobrevivência. Portanto, diferentemente da defesa irrestrita da honra, ele segue o caminho que preconiza a vida acima de tudo mais.

Onoda: 10 Mil Noites na Selva é baseado na história real do oficial que continuou por quase 30 anos embrenhado numa ilha filipina depois que a Segunda Guerra Mundial teve o seu término decretado. Sim, um homem permaneceu fiel aos seus ideais de sobrevivência acima de qualquer coisa, ignorando inclusive os avisos vindos de fora (por ele considerados uma estratégia inimiga para desentocá-lo). Mas, de que modo o filme opta por abordar essa figura singular que, de certa forma, protagoniza uma tragédia pessoal com ares de efeito-colateral de guerra? De um modo principalmente descritivo. Para começar, a iniciação de Onoda nessa filosofia contrária ao suicídio ritualístico (como forma de retificar a honra) é feita dentro de uma série de exposições. O cineasta Arthur Harari utiliza uma decupagem bastante tradicional (com predominância de planos médios e planos americanos) para elaborar a entrada do jovem na “guerra secreta”. Essa operação tão importante de dividir as sequências em fragmentos menores privilegia o que está sendo dito, deixando subtextos e afins um pouco asfixiados pela verborragia. E o pingue-pongue do plano/contraplano prevalece durante as conversas em que tudo é diretamente dito, em que até mesmo as sugestões acabam vindo à tona. Desse jeito, os não ditos duram muito pouco, pois rapidamente alguém transforma as dúvidas em certezas.

Com quase 180 minutos de duração, Onoda: 10 Mil Noites na Selva é um filme de andamento compassado, de desenvolvimento modorrento e cansativo. O longa-metragem poderia ser um belo exemplar de estudo de personagem, com as atenções voltadas a esse homem que experimentou uma vivência gradativamente mais solitária na floresta enquanto não esmorecia sua vontade de cumprir o "nobre" propósito militar. Mas, Arthur Harari não mergulha vertiginosamente na personalidade do indivíduo, mantendo-o num meio-termo entre o exemplo de perfil militar e aquilo que o particulariza num cenário em que os discursos comuns tendem a minimizar as peculiaridades. A imposição da filosofia do recém-chegado Onoda não é vista muito para além de um ruído natural entre novatos e veteranos; as teimosias do oficial não são compreendidas dentro de uma investigação clara de personalidade; a relação dos sobreviventes com o meio ambiente inóspito e repleto de armadilhas naturais é uma sucessão de lengalengas sem variações. Dessa maneira, o resultado é um longo e reiterado trânsito de fardados por um território ermo até que todos (menos Onoda, claro) sucumbam de alguma maneira. E esse cenário não é valorizado como poderia, já que o realizador evita encara-lo como um labirinto desfavorável ou mesmo enquanto um fim de mundo característico da tragédia do resiliente Onoda.

Curiosamente, Arthur Harari opta por não observar os sobreviventes japoneses de acordo com a perspectiva dos ilhéus. Imagine só um grupo transitando pela floresta densa, ao longo de quase 30 anos, se transformando numa espécie de brigada fantasma que estende os horrores da guerra para além de sua duração histórica. Pois bem, em nenhum momento temos acesso a eles do ponto de vista dos moradores locais. Os filipinos são restritos ao papel do “outro”, o daquele povo despersonalizado e não contemplado nessa frágil reflexão sobre os horrores profundos de um embate bélico mundial. Onoda: 10 Mil Noites na Selva é conservador até mesmo ao tentar situar os perigos oferecidos pelo terreno desconhecido. No máximo, vemos os personagens tomando chuva e tendo dificuldades para vencer as escarpas. Nada muito mais significativo do que isso. Se trata de uma abordagem descritiva, com sentimentos, frustrações, adversidades e melancolias servidas de bandeja. Os atores desempenham bem seus papeis, mas as possibilidades expressivas de um close-up, por exemplo, logo são sabotadas pela inclinação da câmera à informação. O filme poderia ser uma meditação profunda sobre o empenho desmedido em missões assumidas como essenciais para definir o propósito humano. Porém, acaba sendo um relato relativamente retilíneo e quase uniforme de uma história excepcional que envolve tanta coisa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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