Crítica

A natureza ora exuberante, ora aterradora dos campos suecos é o pano de fundo do amor de duas mulheres que interagem, basicamente, num nível mais espiritual que carnal. A voz de uma, a relatora responsável por introduzir o verbo numa narrativa essencialmente visual, declama palavras solenes, cuja função é denotar a pretensa magnitude dos sentimentos. Elas vivem no fim do século XIX, época denunciada por figurinos, objetos cenográficos e pela decoração da casa. Em Onde o Mar Descansa há uma forte inclinação ao plano poético, à obtenção de significados por meio dos elementos residentes além do superficial. Às passagens idílicas, nas quais as apaixonadas gozam de uma ligação instaurada na ordem do sublime, feita do romantismo num estado bruto e imaculado, sobrevém a angústia decorrente da perda e a degradação da atmosfera, reflexos da visível desestabilização da amante remanescente.

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A separação não explicada, talvez fruto da morte ou de algo tão definitivo quanto, dentro daquela realidade particular, provoca uma reviravolta na geografia interna da mulher que passa a lamuriar-se. Os campos verdejantes e os horizontes paradisíacos dão lugar à neve e as dificuldades inerentes à predominância do frio extremo. O branco angelical das vestes cede espaço ao preto, cor alusiva à tristeza. Onde o Mar Descansa possui imagens bem bonitas, mas cuja inocuidade deriva, no fim das contas, da subserviência ao dito. Neste filme dos diretores André Semenza e Fernanda Lippi, texto e imagem dependem um do outro, de maneira venosa, para transcender suas próprias limitações. O crescimento da solenidade, atributo que toma conta da trama, é acompanhado pelo hermetismo. O surgimento de demais mulheres é confuso, aparentemente sem qualquer propósito, a não ser o de incrementar o mistério.

A protagonista se expressa fundamentalmente pela via corpórea, valendo-se de passos de uma dança convulsionada, tentando transmitir o desespero de sentir-se sozinha sem a alma gêmea. Essa coreografia da miserabilidade é repetida à exaustão, até atingir a esterilidade em sua necessidade de deflagrar a exacerbação da dor. A estrutura inicial é engenhosa, embora não menos cansativa, pois se vale de pequenos estilhaços memorialísticos para, primeiro, mostrar a plenitude de um relacionamento fechado em sua existência, e, segundo, apresentar o cenário em que o luto se impõe como um hóspede indesejado, porém, inevitável. Onde o Mar Descansa é abstrato num grau exagerado, porque codifica demasiadamente suas mensagens, buscando o estabelecimento e a calcificação de uma esfera praticamente metafísica no que tange ao relacionamento das protagonistas, inclusive com o meio circundante.

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Os diretores André Semenza e Fernanda Lippi privilegiam a dança como meio de expressão, sufocando por inabilidade até mesmo a dimensão lírica construída com fragilidade. O esvaziamento gradativo de Onde o Mar Descansa passa pela irrelevância do texto, pois mais pomposo que verdadeiramente denso, e deságua no subaproveitamento imagético. Não bastasse o inesperado aparecimento e o subsequente desaparecimento de figuras estranhas, como as desconhecidas vestidas de negro, somos impelidos a testemunhar sessões intermináveis de autocomiseração, estas encenadas como parte de um bailado pesaroso, no qual a inevitabilidade decreta a infelicidade. Ditadas por um ritmo caudaloso, as sequências se sucedem, não raro reciclando, sem inventividade, determinados procedimentos e apontamentos pregressos, do que resulta a sensação opressora de se andar em círculos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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