Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois

14 ANOS 88 minutos
Direção:
Título original: Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois
Ano: 1007
País de origem: Portugal / França

Crítica

5

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Sinopse

Um retrato afetivo da cidade de Lisboa, em Portugal, com o bônus da evocação de um filme antigo.

Crítica

Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois é um filme que convida a olhar, num processo semelhante à meditação. Praticamente sem falas nem diálogos, o longa-metragem assinado por João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata começa anunciando a sua intenção: revisitar cenários de Os Verdes Anos (1963), clássico português inspirado na Nouvelle Vague francesa que capturou o frescor e as inquietações de uma juventude em ebulição. Da janela dos realizadores é possível ver um desses lugares, especificamente onde os protagonistas deram o seu primeiro beijo. É de se esperar, portanto, que o diálogo entre passado e presente passe pela renovação de uma perspectiva (de mundo, de juventude, de sociedade, etc.), quiçá a partir da comparação. Não é exatamente o que acontece. Aliás, aos que assistiram a Os Verdes Anos o resultado dessa conexão provavelmente seja um pouco mais claro e efetivo, algo que não acontece a quem não teve a oportunidade de conferir o clássico. João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata não facilitam o percurso associativo aos “ignorantes”, escapando à nossa expectativa de encadear novo e velho para gerar sentidos. Basicamente, temos um retrato lento e com pouca ênfase das paisagens marcadas pela gravidade da pandemia que então assola o mundo. Cenários esvaziados, às vezes ocupados por gente de máscara, gestos e afazeres cotidianos. E nada mais.

Por um lado, filmes como Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois são gestos subversivos numa realidade como a nossa, em que grande parte dos espectadores está acostumada com estímulos constantes para evitar qualquer dispersão. João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata propõem uma experiência completamente avessa a essa tendência de priorizar o engajamento, pois feita de tomadas aparentemente sem encaixe umas nas outras, senão dentro da proposta de observar e seguir observando. Os realizadores radicalizam, por exemplo, cortando de um transeunte anônimo para alguns segundos de contemplação da ação do tempo numa parede da garagem de um prédio. Se valendo da improvisação de jazz contemporâneo, a partir de uma partitura escrita em 1963, eles transferem à música a função de conferir certa temperatura emocional a essas cenas soltas. Por meio de sons ora melancólicos, ora repletos de gracejos, manifestam aquilo que nem sempre as imagens conseguem de modo autônomo. Em dois momentos bastante específicos (um em preto e branco e o outro colorido) a atriz Isabel Ruth aparece para cantar. Uma vez sabendo que ela interpretou uma das protagonistas de Os Verdes Anos, fica evidente a simetria simbólica entre esse passado mergulhado em utopias/ sonhos juvenis e o presente em meio à crise sanitária que pregou um distanciamento humano.

Por outro lado, Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois testa a paciência do espectador e coloca à prova a sua capacidade de lidar com a monotonia. Durante os quase 90 minutos do filme somos submetidos a uma consecução de retratos breves, de enquadramentos que, uma vez somados, formam um painel livre das redondezas. João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata são cineastas experientes e brincam com a nossa expectativa de que algo aconteça para romper o marasmo, a julgar pelas vezes em que movimentam levemente a câmera como se estivessem prestes a enxergar algo diferente. Ou mesmo na sequência em que “flagram” uma mão e uma perna decepadas, largadas à beira da estrada – dispositivo para justamente instigar a esperança do testemunho de algo extraordinário. Portanto, é perceptível que o longa-metragem resulta de uma abordagem consciente, da tentativa de encontrar poesia no ordinário, na observação vagarosa de uma vida transcorrendo dentro de uma crise que obriga as pessoas a utilizarem máscara enquanto coloca em risco a existência de um futuro. E nem sempre é fácil acompanhar essa intenção lírica sem bocejar ou se pegar arrastado por uma derivação de pensamentos aleatórios convocados inconscientemente para tornar a experiência menos cansativa. Por mais que o filme não seja instigante, ele provoca essas reações muito indicativas.

No mesmo mês em que chega aos cinemas brasileiros o excelente Fogo-Fátuo (2023), filme assinado apenas por João Pedro Rodrigues, desembarca em nossas salas de exibição esse desafiador Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois que João Pedro assina com seu companheiro de trabalho e vida João Rui Guerra da Mata. São obras completamente diferentes, pois partem de intenções específicas e possuem linguagens singulares. Um é a reflexão sobre passado, presente e futuro por meio de uma fantasia musical de alta carga homoerótica. O outro é uma ponderação contemplativa e lenta sobre o tempo, uma jornada com doses generosas de abstração em que somos convidados à hipnose por imagens de coisas que somente se tornam interessantes/cativantes se ressignificadas pela câmera. Em que se pese as limitações de um crítico que não assistiu a Os Verdes Anos (e que, por isso mesmo, certamente não alcançou determinadas conexões afetivas estabelecidas pelos cineastas), esse documentário aberto a ficção é uma experiência instigante no início, por sua brava resistência aos modelos comuns de cinema, mas gradativamente enfraquecida pela repetição sem variações. A intenção de reter as sensações de tempo estagnado num mundo chacoalhado pela COVID-19 está ali, a impressão de que a vida está congelada e resta apenas o banal. No entanto, as conexões com o filme antigo, os efeitos da reiteração, a familiaridade com o cenário, tudo é diluído nesse fluxo de detalhes.

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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