Crítica
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Sinopse
Crítica
O tema central de O Sonho de Clarice é o luto, especificamente como uma criança elabora a imensa dor de perder alguém querido. Os cineastas Fernando Gutierrez e Guto Bicalho recorrem ao lúdico para mostrar as estratégias emocionais da inocente Clarice diante da falta da mãe, dessa ideia ainda um pouco nebulosa da morte como estado permanente de ausência. Para citar apenas um filme recente entre vários que fazem algo parecido podemos recorrer ao francês Pequena Mamãe (2021), obra-prima na qual uma garota enlutada mergulha numa situação fantástica logo depois de ter perdido a avó. Realmente, em vários momentos o cinema mostrou crianças escapando à fantasia diante de realidades duras, como em O Labirinto do Fauno (2006) em que a protagonista mirim mergulha num universo espetacular para conseguir lidar com as consequências da ditadura em seu país. Ainda que seja bem menos inventiva e instigante do que os dois longas-metragens citados como exemplos, a animação brasileira tem os seus méritos. O primeiro (e mais destacado) deles é a técnica artesanal, felizmente distante das texturas computadorizadas que criaram uma espécie de padrão visual no cinema de animação mundial. Os personagens parecem recortados e montados como bonecos folclóricos, o que dá ao filme o aspecto mambembe alusivo diretamente à linguagem do circo e das artes manuais.
Clarice vive com seu pai numa carroça. O homem cata lixo para sustentar a menina que, por sua vez, frequenta a escola e se entretém frequentemente sozinha no cenário modesto em constante deslocamento. Aliás, são interessantes as cenas dela deitada na cama ou fazendo outra coisa no interior da casa itinerante, principalmente pela ênfase que Fernando Gutierrez e Guto Bicalho dão a uma rotina inquieta. Quase não há silêncios nesse dia a dia em que o pai puxa a carroça cujos braços articulados vão recolhendo os descartes capazes de lhes garantir um suspiro financeiro. Clarice é obrigada a se acostumar à solidão e à constância dos sons dessa casa em trânsito, tais como os pratos e demais traquitanas chacoalhando. No princípio, tudo o que a trama nos apresenta é a dupla de nômades andando pela cidade e, às vezes, alguma demonstração de frustração da menina indefesa. O roteiro de O Sonho de Clarice é um pouco esquemático, sobretudo pela maneira como associa de modo simplista os fatos e as suas consequências. Por exemplo, ao mostrar um colega de escola sendo buscado pela mãe, Clarice começa a dar sinais de melancolia porque não tem mais a companhia da própria mãe morta. Até então o filme não havia apresentado qualquer indício dessa saudade e a convoca como uma reação à observação do colega recebendo carinho. A trama repete muito esse tipo de relação.
O Sonho de Clarice tem dois momentos muito distintos. No primeiro deles vemos a construção do dia a dia da protagonista: a relação com o pai trabalhador; a vivência no interior da carroça (que por dentro parece muito maior do que por fora); e as interações com crianças de sua idade. No segundo, iniciado justamente depois do testemunho do amigo recebendo afeto, o longa mergulha Clarice nesse universo lúdico que ela cria para poder lidar com a dor da saudade. E ambos os momentos do filme tem problemas de ritmo, especialmente levando em consideração que em muitos instantes a trama parece arrastada, um tanto morosa demais. Quando o filme promove essa mudança rumo a uma visão mais poética e menos pragmática da vida infantil atravessada pelo luto, Fernando Gutierrez e Guto Bicalho apostam todas as fichas na construção de situações visualmente bonitas, mas dramaticamente menos eficientes. O grande problema está na dilatação do tempo, na extensão muitas vezes improdutivas de cenas que valem apenas o quanto pesa o passageiro deslumbramento visual. A sequência de Clarice se deslocando por um cenário alusivo a uma colcha de retalhos costurados em busca de unidade é extensa demais – a duração obedece a uma diretriz mais estética do que necessariamente dramática. Assim, os realizadores se demoram em determinados vislumbres em busca da construção da exuberância.
Não é função do crítico dizer qual seria a metragem ideal para os filmes. Porém, como à crítica também cabe conjecturar com base em análises e elementos perceptíveis, dá para imaginar que a trama de O Sonho de Clarice poderia se beneficiar de uma duração menor. São muitos os instantes em que a história repete componentes e observações anteriormente vistos, assim gerando uma reiteração que não beneficia a observação desse bonito universo lúdico criado pela protagonista infantil a fim de lidar melhor com a dureza da morte. Ainda dentro do terreno das suposições, pode ser que essas constantes repetições sejam uma estratégia para engajar um público de faixa etária menor. No entanto, o resultado não é sempre estimulante, pois repleto de dispersões que podem afastar parte da plateia desse conto singelo e bonito sobre alguém precisando lidar com algo que lhe escapa da total compreensão. Outro ponto fraco é a utilização do pai, uma figura interessantíssima que literalmente carrega o que restou de sua vida por uma cidade que lhe demonstra pouca empatia – verdade seja dita, o filme não abre o seu campo focal para mostrar mais do que meia dúzia de personagens coadjuvantes, então o contexto social dos personagens é bastante superficial. No fim das contas, entre prós e contras, o que o filme tem de melhor (dispositivo lúdico para elaborar a morte) acaba aparecendo tarde demais.
Filme visto por ocasião do 8ª Cine Jardim, em outubro de 2024.
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