Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Em 1977, o parlamento espanhol aprovou a Lei de Anistia que garantia a liberdade de todos os presos políticos e a proibição do julgamento de qualquer ato criminoso ocorrido durante a ditadura de Francisco Franco no país. O franquismo assombrou a Espanha durante 38 anos, deixando um imenso número de vítimas e parentes sem respostas.

Crítica

O Silêncio dos Outros não é um filme fácil de ser acompanhado, especialmente se o anseio da plateia for evadir momentaneamente da dura realidade. Pelo contrário, pois ele procede como exumador da História espanhola, desenterrando simbólica e literalmente fragmentos de um dos períodos mais nefastos desse país europeu, a chamada ditadura franquista. O documentário dos cineastas Almudena Carracedo e Robert Bahar é muitas vezes exasperante, sobretudo ao encarar um processo revoltante de esquecimento que sobreveio à morte do general Francisco Franco. Amparados pela Lei da Anistia, que funcionou como um guarda-chuva protegendo torturadores e brutais agentes do Estado, os criminosos de guerra permanecem soltos, impunes, tocando suas vidas, donos do benefício de seguir adiante, algo negado às vítimas que, na contramão do que o judiciário friamente prega, não conseguem deixar para trás os martírios físicos e psicológicos aos quais foram submetidos em nome de uma cruzada contra o comunismo. Parece familiar, e infelizmente o é. Infelizmente.

Há uma poesia melancólica substanciando o trajeto objetivo de O Silêncio dos Outros. Os realizadores recorrentemente mostram as estátuas erguidas no Vale do Jerte, obra do escultor Francisco Cedenilla, em memória aos mortos e desaparecidos no franquismo. É um aceno lírico e doído à imortalidade de uma luta que não pode ser calada pela truculência estatal. Os buracos de bala, nelas feitos por apoiadores remanescentes do regime sanguinário, é uma espécie de arremate, pois denota a persistência do pensamento que motivou desaparecimentos e mortes decorrentes de dissensos ideológicos/morais ou simplesmente da selvageria humana. Também foge à esfera estritamente prática o vislumbre do ramalhete de flores à beira de estrada demarcando tumbas coletivas, apodrecendo até morrer, isso enquanto sua depositante luta contra o tempo para ver a justiça sendo feita antes de partir. Maria Martín, essa senhora de fala sussurrada, de voz desgastada pelo tempo, transita pelo povoado remontando ao instante em que sua mãe, humilhada, de cabeça raspada em praça pública, sofreu aviltes de crianças que sequer tinham entendimento das brutalidades em curso.

Um dos pilares de O Silêncio dos Outros é a morosa e complexa ação judicial, impetrada na Argentina, que visava desafiar a Lei da Anistia, enquadrando os delitos do período franquista como crimes contra a humanidade, ou seja, portanto não passíveis de prescrição e de viável trâmite em terras estrangeiras. O número de querelantes cresce gradativamente e o filme articula com perícia e sensibilidade seus relatos, então alinhavados para gerar um painel suficientemente amplo, que engloba, a partir de certo momento, denúncias de milhares de crianças roubadas de suas mães na maternidade. O plano estatal era redistribuir os filhos para eles não reproduzirem adiante o pensamento “vermelho” dos pais, ou, supostamente, não sentirem vergonha de serem fruto de uma “produção independente”, na época considerada um pecado pelos cultores dos bons costumes, os chamados "cidadãos de bem". É particularmente doloroso acompanhar pessoas que passaram boa parte de suas vidas lutando contra o esquecimento institucionalizado, desejando não mais que reparação. Difícil segurar a emoção frente à Ascensión Mendieta, a quase nonagenária que anseia por localizar seu pai.

Nesse longa-metragem contundente, Almudena Carracedo e Robert Bahar comparam a conduta da Espanha e dos países latino-americanos em contato com as lancinantes memórias de seus tempos nefastos. Não à toa, o Brasil fica de fora dos exemplos positivos, como Argentina e Uruguai, uma vez que, semelhante ao país ibérico, tampouco discutimos amplamente o passado, preferindo colocar panos quentes e uma pá de terra sobre o outrora, aferrando-nos à falácia do “vamos olhar para frente”, uma posição covarde diante de arbitrariedades revoltantes. Os cineastas passam pela constatação da admiração de homens e mulheres por Franco, vista na lembrança de sua morte, ocasião repleta de torpes saudosos. Também é habilmente articulado, dentro dessa imagem ampla e multifacetada, o resultado enraizado do frequente discurso contrário ao revolver das águas passadas. O Silêncio dos Outros é pungente e empático, instigando o árduo debate, passando distante de isentar-se, permanecendo absolutamente fiel ao aspecto humano, aqui atrelado à saudade dos remanescentes e às marcas indeléveis, assim se insurgindo contra a ditadura do silencio, ressoando clamores e súplicas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
9
Leonardo Ribeiro
8
MÉDIA
8.5

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