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Sinopse

Desde o desaparecimento de sua irmã, Jax cuida, quase sem dinheiro, de sua sobrinha, Roki, na reserva indígena Seneca-Cayuga, em Oklahoma, EUA. Ela usa todo tempo livre para tentar encontrar sua irmã desaparecida e ajudar Roki a se preparar para o powwow, a tradicional reunião dos povos indígenas da América do Norte.

Crítica

Dona de um passado marcado pelo envolvimento com o tráfico de drogas, Jax (Lily Gladstone) está procurando desesperadamente a irmã desaparecida. Enquanto tenta se sustentar sem recorrer novamente ao crime, ela precisa cuidar da sobrinha pré-adolescente Roki (Isabel Deroy-Olson). Indígenas moradoras de uma reserva nos Estados Unidos, ambas sofrem preconceitos de modo recorrente, um desconforto distribuído de maneira homeopática na trama de O Rito da Dança. Por exemplo, ao serem abordadas por um policial, ambas sabem que devem proceder cautelosamente se não quiserem ser abatidas ao menor sinal de resistência. Ao se deparar com o pai branco e ausente, Jax sente na boca novamente o gosto amargo do abandono que tem contornos racistas. O longa-metragem dirigido por Erica Tremblay não é um grito de denúncia contra a discriminação, estando mais para um drama quadradinho sobre a educação sentimental necessária para uma mulher desgarrada ser digna do estatuto de mãe. Aliás, já vimos esse filme inúmeras vezes. No entanto, quase nunca a partir de uma perspectiva indígena. Então, o roteiro de Erica Tremblay e Miciana Alise recorre a um modelo muito utilizado anteriormente, insere nele personagens também arquetípicos e facilmente reconhecíveis, se distanciando da sensação completa de clichê somente por conta da utilização de questões relativas aos nativo-americanos.

Grande sensação da temporada 2023/2024 por conta de sua atuação em Assassinos da Lua das Flores (2023), Lily Gladstone é produtora e protagonista dessa empreitada. Na pele da sofrida Jax, ela novamente sobressai por conta de sua capacidade de expressar uma multidão de sentimentos às vezes por meio de um olhar profundo ou mesmo das pausas dadas no tempo certo. O desempenho da atriz também ajuda a combater o excessivo sabor de “já vi este filme” de O Rito da Dança. Jax é a figura de comportamento errático que tem de guiar a menina mais nova ao caminho da maturidade. Como estamos diante de uma história ambientada num círculo social indígena, a conexão entre Jax e Roki não é superficialmente parental, mas tem um quê de legado. Pena que a cineasta Erica Tremblay não atente melhor para a diferença entre herança e ancestralidade a fim de conferir um gosto mais singular ao enredo mercado pela previsibilidade. Quando percebemos que a diretora está seguindo praticamente à risca todos os passos antes dados por filmes semelhantes, fica fácil descobrir o que sempre acontecerá a seguir. Mesmo que a surpresa não seja um atributo essencial numa trama como essa, a conformidade com os lugares-comuns tira um pouco do brilho emocional e político dessa história de crescimento. Uma vez anunciada a tragédia, é fácil de antecipar em qual cena tudo será parcialmente resolvido.

Por um lado, é positivo que O Rito da Dança seja palatável e siga convenções, pois assim tem o potencial de alcançar um público mais amplo e sensibiliza-lo às questões indígena. Mas, por outro lado, será que o melhor caminho para a conscientização é a aderência a padrões narrativos que tendem a homogeneizar as lutas? Por mais que os personagens falem de coisas específicas, como a dança que conecta mãe e filha, além de outros costumes e tradições nativo-americanos, poderíamos substituir os indígenas por qualquer grupo oprimido sem tantas adaptações. Assim, o que se percebe é a visão superficial da submissão indígena ao racismo imperativo na sociedade estadunidense, como se a subjugação sofrida pelos povos originários coubesse num modelo simples e, portanto, aplicável a outros grupos historicamente reprimidos. Esse tipo de abordagem poderia ser esperado de uma realizadora branca, ou seja, de alguém que observasse aquele mundo peculiar e suas circunstâncias específicas por um prisma externo, limitado por preconcepções distorcidas historicamente. No entanto, Erica Tremblay é indígena, membro da nação Seneca-Cayuga retratada pelo filme, o que inviabiliza essa leitura da fragilidade da obra como fruto de um ponto de vista pouco comprometido com a comunidade nativo-americana. De toda forma, a ordem de prioridades permanece a mesmíssima do cinema mais convencional.

Nas entrelinhas, há a sugestão de que a marginalidade acabou sendo quase a única alternativa para um povo discriminado diariamente. Jax é retratada como alguém que faz o necessário para sobreviver, repetindo instintivamente aquela máxima de “fazer certo por linhas tortas”, muito utilizado pela fração judaico-cristã da população para justificar outro preceito: “os fins justificam os meios”. Sem muitos caminhos, Jax enveredou pela criminalidade que também cooptou o vizinho traficante e a irmã desaparecida. Se há uma coisa boa em O Rito da Dança é o desenho eficiente da marginalização dos membros da nação Seneca-Cayuga, situação contraposta pela atuação do irmão J.J. (Ryan Begay) como agente da lei. Até por falta de exemplos contundentes de indígenas que não sejam contraventores ou membros de uma força policial destituída de autoridade efetiva, fica claro que Erica Tremblay propõe uma leitura limitada a fim de enfatizar a precarização dos descendentes dos povos dizimados por séculos nos Estados Unidos. Sobre a conexão entre Jax e Roki, ela adquire um contorno mais forte de educação sentimental em via dupla quando ambas caem na estrada fugindo dos tentáculos da legalidade. Uma está tentando crescer nesse mundo que violenta gradativamente a sua subjetividade como indígena e a outra precisa lidar com os fantasmas do passado enquanto pavimenta o futuro àquela que vem depois.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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Marcelo Müller
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Leonardo Ribeiro
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