O Relatório

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Sinopse

Em O Relatório, Daniel J. Jones (Adam Driver), funcionário do Senado, descobre segredos chocantes sobre métodos de tortura ao liderar uma investigação sobre o Programa de Detenção e Interrogação da CIA após o 11 de Setembro. Com Annette Bening e Jon Hamm.

Crítica

Certos momentos na História são determinantes para o rumo dos acontecimentos, gerando mudanças drásticas a partir das suas ocorrências. O antes deixa de existir, e tudo passa a ocorrer conforme o novo registro. O assassinato do arquiduque do império austro-húngaro Francisco Fernando, por exemplo, determinou o começo da Primeira Guerra Mundial. Qualquer um com o olhar mais atento irá encontrar diversos exemplos como esse no decorrer dos anos e décadas. Desde o início do século XXI, nada foi mais marcante para a humanidade, por exemplo, do que os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. O mundo do dia 12 era completamente diferente daquele do dia 10. Mas seriam essas transformações tão radicais, a ponto de não ser possível um retorno a um ponto anterior? O Relatório, escrito e dirigido por Scott Z. Burns (veterano produtor, indicado ao Bafta por O Ultimato Bourne, 2007, aqui estreando como realizador) trafega por estes questionamentos, e se não chega a atingir respostas plenas e satisfatórias, ao menos é eficiente em apontar caminhos que poderão ser melhor trilhados no futuro.

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Daniel J. Jones (Adam Driver, em um papel que lhe oferece poucas chances de explorar sua versatilidade, mas que mesmo assim o assume com entrega e comprometimento) faz parte da equipe de assessores da senadora Dianne Feinstein (Annette Bening, conduzindo uma personagem de múltiplas motivações com a eficiência que lhe é característica). A ele é designada a tarefa de organizar o tal relatório do título, um estudo sobre as práticas da CIA em suas investigações sobre práticas terroristas e supostos suspeitos em território norte-americano, tudo isso pós-11 de setembro, é claro. Para começar, terá que formar uma equipe e trabalhar dentro dos escritórios da própria Agência Central de Inteligência, debruçando-se sobre arquivos e registros oferecidos por ninguém menos do que aqueles estarão sendo investigados. Uma missão de óbvias dificuldades, que encontrará resistências de ambos os lados – os agentes, que declaram nunca terem feito nada de errado, e também os políticos (tanto da esquerda, quanto direita, ou seja, democratas e republicanos), receosos em mexer nos brios de nomes importantes, sejam eles quais forem.

O Relatório é aquele tipo de filme que todo ano costuma receber diversas indicações ao Oscar, mas poucas vezes sai da grande festa do cinema mundial com alguma estatueta em mãos. O tema que explora é importante, e o trabalho reunido em cena demonstra a qualidade usual, já esperada daqueles acostumados a explorar a linguagem cinematográfica com tamanha excelência. Por outro lado, o que se vê na trama são americanos atrás das pontas soltas deixadas pelos próprios americanos. Pois uma coisa é certa: onde há fumaça, há fogo. Jones não recebeu tal missão por acaso, e quanto mais se aprofunda em suas pesquisas, maiores – e mais assustadoras – serão as descobertas. Relatos de técnicas de tortura, interrogatórios no quais os direitos humanos são menosprezados – e até mesmo ignorados – repetidamente e o estímulo a agressões e violências injustificadas, vindas tanto dos oficiais em campo como a constante anuência daqueles que deveriam estar no comando, farão parte desse terrível cardápio. Porém, conhecimento é tanto uma dádiva, quanto uma maldição. E uma vez em poder dele, não é mais possível voltar atrás.

A questão, como se percebe, estará tanto nos ombros do jovem idealista que se vê cada vez mais motivado em sua busca por justiça, ao mesmo tempo em que irá abandonando tudo e todos ao seu redor, dos que haviam se comprometido com ele no início até mesmo os que poderiam ser vitais em sua jornada, como também naquela que lhe deu a primeira ordem, lá no começo desse processo. Driver faz do seu personagem uma figura trágica, de consciência limitada a respeito do alcance dos seus atos, como um Davi diante de um Golias que não o despreza – muito pelo contrário, por vezes se revela obstinado em esmagá-lo sem misericórdia. No outro lado dessa mesma moeda, está a destreza de Bening, que oferece uma composição que brilha pelo controle contínuo em suas atitudes e pela capacidade em antever cada um dos seus passos. Os ideais que defende são claros, mas há mais a ser decidido do que apenas diferenciar o certo do errado. A balança pela qual se equilibra possui outros pesos a serem considerados, e será nessa sensível dubiedade em que a atriz encontrará espaço para criar um tipo não apenas passível de identificação, mas também rico em sua complexidade.

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Dito tudo isso, O Relatório perde seguidas oportunidades de ousar além do que lhe está assegurado apenas pelos talentos que reúne – no elenco, há ainda participações rápidas, porém marcantes, de nomes como Jon Hamm, Corey Stoll e Maura Tierney, enquanto que a equipe técnica conta com o fotógrafo Eigil Bryld (vencedor do Emmy por House of Cards, 2013) e o compositor David Wingo (indicado ao Emmy por Barry, 2019), entre outros, além da assinatura de Steven Soderbergh como um dos produtores. Assim, contenta-se com não mais do que aquilo que lhe é esperado, resultando em um processo de mea culpa, ou seja, americanos falando do quão ruim eles podem ter sido no passado, “mas, vejam bem, eram situações excepcionais”, e como eles mesmos são capazes de corrigir seus erros, sem deixar de lado a posição de herói que salva o dia – algo que lhes é tão caro. Competente, sim. Mas, ao mesmo tempo, redundante e autocentrado, confirmando-se como um todo incapaz de alcançar a mesma força que muitos dos seus elementos quando vistos separadamente.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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