Crítica


5

Leitores


31 votos 6.6

Onde Assistir

Sinopse

Willie E. Gary é um advogado de fala mansa e imenso carisma. Ele se revela a última esperança de Jeremiah O'Keefe, dono de uma funerária que precisa salvar seu negócio quando um acordo não é cumprido de acordo com o esperado.

Crítica

O conceito de feel good movie (filme para se sentir bem) pode caber num espectro muito amplo de produções. Mas, em linhas gerais, tratam-se daquelas histórias que visam agradar os espectadores, fazer com que eles tenham uma experiência bem confortável no fim das contas, geralmente ao término de jornadas que podem ser mais ou menos leves, mais ou menos redentoras. Mesmo que toque em questões espinhosas, O Próprio Enterro pode ser enquadrado nessa categoria pela maneira como aborda uma luta entre Davi e Golias, sempre nos colocando ao lado do mais fraco, por quem somos convidados a torcer. Jeremiah (Tommy Lee Jones) é dono de uma empresa funerária familiar (com oito unidades espalhadas nas cercanias). Herói de guerra, reconhecido por defender os direitos civis quando liderou a prefeitura de sua cidade, ele está financeiramente em maus lençóis e decide seguir as orientações do seu advogado (e amigo de longa data), Mike (Alan Ruck): sentar para negociar com um conglomerado enorme disposto a comprar parte de seu patrimônio e, com isso, oferecer-lhe uma boa alternativa para manter algum legado aos filhos. Jeremiah é o pequeno empresário (médio, melhor dizendo) sentando à mesa do gigante para negociar em desvantagem, pois está com a corda no pescoço. Enrolado depois de fechar negócio, aciona judicialmente o comprador por quebra de contrato.

Até aí o leitor pode estar se perguntando “mas como diabos um filme sobre direito contratual pode ser interessante?”. E a resposta é: não sendo apenas uma história sobre divergências burocráticas e práticas predatórias de mercado. É para dar esse molho diferente que entra em cena o espalhafatoso Willie (Jamie Foxx), advogado especializado em causas relativas a lesões corporais, sujeito que venceu economicamente na vida com a advocacia. De infância pobre nas plantações de cana de açúcar, ele se tornou o feliz e orgulhoso proprietário de uma reputação vencedora, bem como de um patrimônio considerável que incluí até avião próprio. Mesmo que a dupla Jeremiah/Willie não seja necessariamente formada por dois pobres desvalidos, ela é financeiramente minúscula se comparada ao capitalista bilionário/inescrupuloso que chefia o império ganancioso marcado por práticas mercadológicas agressivas. O Próprio Enterro então estabelece um cenário propício para torcermos ferrenhamente pela vitória de Davi contra o enorme Golias no litígio que parecia aborrecido, isso antes de ser acrescido de elementos como a questão racial que o perpassa como um subtexto fundamental. Porém, nada que crie reflexões densas ou situações dolorosas. Tudo fica dentro de uma perspectiva simples em que os bons vencem os maus no fim das contas, um resultado que apazigua qualquer revolta ou comoção.

Desse modo, O Próprio Enterro é o típico feel good movie, pois não importa o quão árdua seja a batalha judicial ou a história segregacionista trazida à tona em meio à disputa contratual, há a promessa de que o bem sempre prevalecerá. Não importando como. A diretora Maggie Betts (corroteirista ao lado de Doug Wright) não perde de vista o racismo estrutural, mas não faz desse tópico o combustível de uma abordagem incendiária. Longe disso, aliás. Em nenhum momento, por exemplo, os litigantes brancos são equivalidos pelo fato de ambos recorrerem a advogados negros visando seduzir um corpo de jurados provavelmente formado essencialmente por afro-americanos. Maggie localiza a razão ao lado de Jeremiah, enquanto o papel de vilão cabe ao bilionário capaz de estratégias nefastas para sobressair economicamente. A realizadora opta por uma abordagem maniqueísta, caracterizada por dois lados bem desenhados, um sendo positivo e o outro negativo, não sobrando muita margem para as áreas cinzentas e afins. De toda forma, os carismas e as competências de Tommy Lee Jones e Jamie Foxx dignificam esses personagens arquetípicos A história é bem contada, ainda que deixe pelo caminho várias nuances e relegue alguns coadjuvantes a participações excessivamente esporádicas que os anulam. Ainda assim, há méritos na construção dessa jornada simplificada na qual a justa vitória dos bons é garantida.

Já vimos este filme diversas outras vezes, com roupagens e premissas levemente diferentes, mas semelhantes em estrutura. Primeiro, os fatos parecem desvantajosos aos heróis; segundo, surge a esperança improvável no horizonte; terceiro, há algo que coloca praticamente tudo a perder; e, quarto, nos 45 minutos do segundo tempo aparece um novo fato garantidor da virada redentora dos mocinhos que decepam a cabeça do dragão da maldade. O Próprio Enterro é um feel good movie porque exibe uma atitude idealisticamente esperançosa diante de coisas como a luta desigual contra os poderosos e a segregação racial. O filme assume um discurso repleto de facilidades, com soluções simples resolvendo problemas difíceis e disputas desembaralhadas como se fosse natural e imperativo o bem prevalecer. Maggie Betts não dá fôlego à personagem de Jurnee Smollett, perdendo-a de vista como a opositora sóbria à extravagância do singular Willie. Outro personagem subaproveitado é o de Mamoudou Athie, o novato idealista que enxerga a disputa com um olhar fresco – essa perspectiva vai perdendo importância ao longo da trama. E além disso, as esposas de Jeremiah e Willie são do tipo “desprovidas de subjetividade, estritamente suportes morais aos maridos”. Então, embora seja agradável de se ver, que tenha figuras cativantes e uma história boa, o filme se ressente da falta de consistência.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *