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Sinopse

Um filho está em busca do filme perdido do pai. Em meio a esse processo de investigação, ele acaba fazendo uma reflexão muito pessoal sobre a Pornochanchada, período fértil e controverso da cinematografia do Brasil.

Crítica

Pornochanchada é um rótulo colocado pejorativamente nos filmes de viés erótico que dominaram comercialmente o cinema brasileiro do finzinho dos anos 1960 ao começo dos anos 1980. Atacadas pelos intelectuais da época, essas produções utilizaram a sensualidade e a exposição do corpo para garantir resultados polpudos nas bilheterias, assim configurando um período de lua-de-mel entre o espectador e o cinema brasileiro. Alguns dos exemplares que atualmente colocamos com certa leviandade embaixo do guarda-chuva da Pornochanchada são fundamentalmente eróticos e cômicos (pornô+chanchada), enquanto outros utilizam o sexo como moeda valiosa para barganhar com as plateias o diálogo sobre temas e circunstâncias importantes. Então, é bem-vinda toda iniciativa que vise desmistificar esse cinema feito no período, bem como evitar que todos os seus exemplares sejam lidos com as mesmas lentes. O País da Pornochanchada é anunciado como um documentário pessoal protagonizado e dirigido por um filho em busca do trabalho perdido do pai. Na verdade, esse dado serve mais como uma desculpa para passar a limpo o período fértil da produção cinematográfica nacional do ponto de vista afetivo. A procura de Adolfo Lachtermacher não reivindica o protagonismo, contrariando expectativas da introdução que fala dessa motivação.

Adolfo é filho de Saul Lachtermacher, diretor de Com Minha Sogra em Paquetá (1960), O Marido Virgem (1974) e Deixa, Amorzinho... Deixa (1975). Não à toa, as imagens remanescentes dessas ficções são as principais fontes de ilustração de O País da Pornochanchada. É como se o filho estivesse dialogando com o pai por meio das imagens de seus filmes, num processo com diversos momentos bonitos, mas que poderia ser melhor explorado do ponto de vista poético. Um filho conversando com as imagens do pai, de certa forma reconhecendo nelas um pouco do homem que o criou em meio à adoração pelo cinema. Que ideia bonita, mas infelizmente encarada aqui apenas no que tem de mais superficial dentro de um processo de rememoração simples. Adolfo utiliza frames dos trabalhos do pai como uma espécie de acesso a um passado que o faz refletir de modo retrospectivo sobre a Pornochanchada. Tanto que, em vários instantes, ele deixa de lado a pessoalidade da investigação e traz para a conversa gente que dá seus testemunhos sobre esse momento tão controverso do nosso cinema. Nesse sentido, o depoimento de Hernani Heffner, diretor da Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, funciona como uma síntese do que foi esse cinema, quais suscetibilidades ele afetava e, principalmente, de que maneiras ele pode ser revisto na atualidade como reflexo acurado de uma época.

O País da Pornochanchada pode ser encarado como um documento afetivo, mas que perde oportunidades valiosas para ir além de sua natureza sumária de releitura histórica. A primeira delas é a dificuldade atrelada à busca por um filme considerado perdido, num país com tantos contratempos para considerar a preservação de sua memória algo absolutamente urgente e prioritário. O resumo dos anos 1970, da contribuição que aquele cinema deu à indústria cultural nacional e ao entendimento da sociedade da época, poderiam muito bem ser entrecortados pelas etapas da busca de Adolfo Lachtermacher pelo tal filme que corria risco de nunca mais ser projetado numa telona. Mas, não é isso o que acontece, pois a tal missão é citada esporadicamente, de fato assumindo aos poucos uma posição de mero gatilho à memória. Ainda dentro desse assunto “preservação”, a própria presença de Hernani Heffner é subaproveitada. Considerado um dos grandes especialistas brasileiros no assunto, Hernani não é questionado sobre políticas públicas, dificuldades de manutenção de acervo e outros tópicos que poderiam dialogar com a melancolia do realizador à procura quixotesca da obra artística que talvez tenha sido perdida para sempre. Negligenciando esse ponto diretamente relacionado aos obstáculos de sua missão, Adolfo acentua a característica apendicular da procura pouquíssimo explorada diretamente.

Então, gradativamente, O País da Pornochanchada se torna uma reflexão parcial (e que não reflete acerca da própria parcialidade) sobre um dos momentos mais intrigantes do cinema brasileiro. Sobreposta às imagens de grandes representantes cinematográficos do período, temos ocasionalmente a voz de Adolfo Lachtermacher se colocando como personagem central de uma investigação que nunca vinga, pois rapidamente ganha ares de elucubração sentimental motivada pela necessidade de revalorizar uma corrente. Sim, pois a Pornochanchada era desancada pelos intelectuais da época – inclusive pelos próceres do Cinema Novo –, acusada de ser constituída de filmes alienantes que utilizavam a “sacanagem” para desviar o foco do espectador das reflexões políticas fundamentais em meio à ditadura. Já os conservadores que seguiam os ditames militares se sentiam incomodados com: nudez, discussão sobre virgindade, menção ao aborto, liberdade sexual feminina e demais indícios da sociedade urbana da época. Adolfo passa um bom tempo do seu filme sinalizando o machismo presente na corrente erótica, em parte sendo bem-sucedido como analista dessa realidade histórica, noutra soando (pela repetição sem variações) como alguém que justifica seu amor pela Pornochanchada “apesar de saber da reprodução de coisas ruins”. A releitura é pertinente, mas o roteiro e a costura deixam a desejar.

Filme visto no Festival do Rio em outubro de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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