O Mochileiro Kai: Herói ou Assassino

12 ANOS 89 minutos
Direção:
Título original: The Hatchet Wielding Hitchhiker
Ano: 0110
País de origem: EUA

Crítica

5

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Sinopse

Um nômade célebre por seu carisma viralizou na internet como herói, mas acabou sendo encarcerado.

Crítica

A história contada em O Mochileiro Kai: Herói ou Assassino é intrigante. Em 2013, um jovem sem-teto viralizou na internet depois de ter defendido (a machadadas) uma mulher atacada pelo homem que tinha lhe dado carona. Carismático e aparentemente sem papas na língua, Kai foi um fenômeno midiático alavancado por vários compartilhamentos, remixes e autotunes que o transformaram numa subcelebridade bastante festejada durante cerca de três meses nos Estados Unidos. O documentário refaz as etapas que levaram o rapaz ao estrelato, partindo do depoimento de Jessob Reisbeck, único repórter que entrevistou o “herói” no fatídico dia. Mais adiante, a cineasta Colette Camden vai enfileirando testemunhos de figuras distintas, tais como a executiva que ajudou a propulsionar a carreira pública de Kim Kardashian por meio de um reality show, o caçador de histórias inusitadas para um programa de audiência massiva, policiais acionados em algum momento desse caso insólito e membros da família do protagonista. O filme possui uma estrutura convencional, com entrevistas entremeadas por dramatizações redundantes – pois ilustram o que alguém acabou de dizer, não indo além disso. Em busca de mais e melhores subsídios para compreender o tom genérico do longa, chegamos à ausência de ambição da realizadora que, aparentemente, se interessa estritamente por contar uma história.

Histórias podem ser contadas de ângulos infinitos e com abordagens não menos vastas. Portanto, mensurar a qualidade de um filme simplesmente pela história é negligenciar aspectos que atribuem qualidade às experiências cinematográficas. Com raras exceções, o modo como as tramas são destrinchadas é responsável por distinguirmos entre as produções ruins, as medíocres, as boas e as excepcionais. Se fôssemos analisar O Mochileiro Kai: Herói ou Assassino estritamente pelo enredo que ele apresenta, certamente a nota no fim deste texto seria maior. Afinal de contas, Kai é uma figura fascinante, escorregadia, ora magnética por conta da bondade e do discurso ecumênico, ora capaz de atos intempestivos que denotam a sua instabilidade. No entanto, a forma como Colette Camden revela a ascensão e a queda equivalentemente violentas faz toda a diferença para o resultado mediano dessa experiência que temos como espectadores. A condução das entrevistas segue o manual dos documentários tipo “cabeças falantes”, adequado à apropriação que o jornalismo faz do cinema. Jornalismo esse que prioriza a notícia, os fatos, o encadeamento das informações em prol de uma imagem esclarecedora. Já o cinema, especialmente quando ciente de suas vastas possibilidades narrativas, não tem compromissos engessados com fatos, ao menos não mais do que possui com representações e pontos de vista.

O desejo de “apenas contar uma boa história” acaba se tornando a limitação desse true crime. Colette Camden foca na progressão reta de uma narrativa que começa como conto de fadas e acaba parecendo pesadelo. As falas dos depoentes são encadeadas no modo “autocompletar”, ou seja, com as informações de uns costuradas às dos outros a fim de chegar a uma tapeçaria única, sem espaços às contradições. Não há muitas tensões entre as falas, indício mais do que claro dessa preconcepção jornalística que soterra os anseios cinematográficos. Porém, o maior calcanhar de Aquiles desse documentário é a falta de atenção para as nuances que estão ali, disponíveis, mas nunca são devidamente encaradas e/ou aprofundadas. Fica evidente que Kai foi celebrado antes de alguém minimamente investigar o seu passado. Essa ansiedade para criar (e depois destruir) ídolos de barro poderia ser mais bem desenvolvida, mas não passa de uma simples anotação num diário de bordo. A responsabilidade da sociedade também é sugerida no questionamento sobre o perigo de festejar publicamente um homem que, por mais bem intencionado, se vangloria de ter desferido machadadas em alguém com sorriso no rosto. Os trabalhadores dos bastidores da imprensa e dos reality shows são entrevistados como se vítimas de um farsante, nunca arrolados como corresponsáveis por uma distorção que não é incomum.

Colette Camden poderia ter feito O Mochileiro Kai: Herói ou Assassino a partir de inúmeras perspectivas. Poderia utilizar Kai como fagulha para incendiar o discurso sobre a voracidade da mídia. Também poderia fazer do caso de Kai um exemplo de como a sociedade se comporta na era do entretenimento. Poderia fazer como Martin Scorsese em Taxi Driver (1976), ou seja, mostrar esse “herói” enquanto espelho torto que reflete a coletividade, subproduto trágico de várias distorções que envergam a percepção da opinião pública. A diretora Colette Camden tinha a faca e o queijo na mão para observar Kai a partir desses prismas cáusticos, pois diante de um homem com distúrbios mentais reduzido a memes e alçado à categoria de subcelebridade, um sintoma perigoso dessa coletividade enferma. No entanto, ela se restringe a contar a história, sem posicionar-se diante dos seus agentes e tampouco demonstrar vigor em sua abordagem de um caso tão inusitado. Por isso o filme parece uma reportagem filmada, no que a aproximação tem de mais reducionista do ponto de vista da obtenção de resultados. Ao seu favor, Colette tem uma trama de implicações instigantes, mas prefere enfileirar informações e nunca gerar um diagnóstico mais que conformista. Para encerrar, uma pergunta para refletir sobre o filme: ele nos oferece algo que não assimilaríamos do mesmo modo lendo o verbete de Kai na Wikipédia?

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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