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Sinopse

João e Mariana tinham um relacionamento aparentemente perfeito. Ambos moravam num sítio paradisíaco. Ele vendia hortaliças orgânicas e ela cultivava flores. No entanto, a infertilidade dele e o desejo dela de ser mãe se chocam violentamente. Anos depois da ruptura, ele decide pegar sua bicicleta e tentar recuperar o tempo perdido.

Crítica

No começo de O Jardim Secreto de Mariana, o cenário é o seguinte: João (Gustavo Vaz) está desesperado para encontrar novamente a sua ex-esposa Mariana (Andréia Horta). Depois de cinco anos de separação e completo afastamento, ele finalmente teve coragem de ler a carta de despedida dela. E o contato com o passado doloroso caiu como uma bomba no seu emocional. Então, o homem persegue a mulher para se fazer ouvir a qualquer custo. Em tempos de discussões cotidianas sobre feminicídios, é perturbador ver o protagonista masculino criando estratégias para forçar uma interação que evidentemente não é bem-vinda. Toda vez em que Mariana enxerga João, deixa muito claro que não quer reviver o sofrimento superado. No entanto, ele ignora o “não” como resposta, insistindo ao ponto de emboscá-la na rua. Embora a intenção do cineasta Sérgio Rezende seja mostrar alguém guiado pelo desespero para recuperar o amor perdido, ele acaba reforçando um estereótipo nocivo: o de que as negativas femininas são um prenúncio da aceitação. Sabem aquilo do tipo: “ela tá fazendo um doce, então basta forçar a barra para que o sim apareça”? É exatamente o que acontece no filme. O rapaz não respeita as vontades da moça até ela simplesmente ceder e entregar o que ele pretende. E o sexo que acontece depois do tempo de distância é o resultado dessa concepção tortuosa.

Na verdade, João somente demonstra equilíbrio emocional quando Mariana baixa a guarda. Um bom tanto pela concepção pouco convincente de Gustavo Vaz, outra parte em virtude do roteiro que não privilegia as minúcias, o personagem masculino se torna um sujeito destemperado e impositivo. Porém, existe um esforço para ele ser visto como outra vítima cegada pelos desmandos do coração. O realizador não utiliza ambiguidades e nuances para tornar densa a personalidade de João, atribuindo seus atos puramente ao desespero. Sérgio Rezende prefere abordar o homem como um doente de amor. De certo modo, o filme “perdoa” seus excessos na reaproximação com a ex-esposa porque enxerga João como o único dos elos que ainda é capaz de reparar a paixão destinada a ser duradoura. O cineasta oferece uma visão romantizada dessas dificuldades sentimentais. Além disso, pega caminhos simples e emprega uma série de oposições fáceis para apresentar (e reiterar) estados de espírito conflitantes. Antes da ruptura, o casal é visto num convidativo idílio campestre. João planta hortaliças orgânicas enquanto Mariana cultiva flores. O casal goza de um cotidiano praticamente perfeito, sem problemas financeiros ou algo que os impeça de ser felizes. Mas, a infertilidade dele se choca com o desejo dela de ser mãe. Uma coisa emperra a outra e acaba determinando o afastamento, bem como os estilhaços de um vínculo rompido.

A vida no sítio é luminosa. Já a posterior, na casa não menos imponente, é fria. A direção de arte demarca bem esses dois polos distantes, mas não faz isso de forma criativa. Para desenhar a felicidade, a palheta de cores carrega verdes e cores quentes. A fim de delinear a tristeza, o cinza-escuro predomina, bem como as partes da casa que não têm qualquer luz. Desse modo, pode até parecer que O Jardim Secreto de Mariana é bem-sucedido ao sugerir também pela imagem a oscilação dos humores/ânimos dos personagens. Não é bem assim, pois aqui esse traço corrobora o maniqueísmo do roteiro. Assim como no aspecto visual de claros felizes e escuros tristes, não há gestos intermediários dentro do drama romântico. João se comporta como uma criança mimada que está querendo recuperar a amada. Se no princípio ele força sua presença, incorrendo no mencionado reforço do estereótipo da falta de validade do não feminino, depois se torna um puxa-saco de marca maior. Em que pese novamente a divisão das responsabilidades entre a direção de Sérgio Rezende e a atuação copiosa de Gustavo Vaz, João fica o tempo inteiro paparicando a ex-esposa como se tivesse de oferecer uma versão ainda mais “regenerada” para evitar perde-la de novo. “Eu sabia que tinha algo, você está linda demais”, é a cantada barata por ele exclamada como se isso fosse “derreter” a interlocutora. E o pior é que “derrete”.

Mariana acaba sendo prejudicada no quesito determinação. Em princípio decidida a não ceder às pressões do ex-marido, ela logo cede; furiosa por ser perseguida e ter sua intimidade devassada, ela rapidamente consente a ele acesso à sua vida; mais à frente, empenhada em deixar claro que não se apaga o passado, ela se envolve de novo com João. São simplificações de um percurso amoroso. Nele, as feridas abertas e que ainda sangram são regeneradas em prol de um sentimento idealizado que vence até os contratempos mais profundos. Outro elemento que não funciona em O Jardim Secreto de Mariana é o pano de fundo botânico. Em vários instantes, há uma tentativa de atribuir sensualidade às formas e aos comportamentos das plantas. E esse tiro n’água fica evidente na cena em que a personagem de Andreia Horta se excita ao estudar a anatomia das flores, circunstância na qual até o ensaio de uma voltagem erótica é sabotado pelo pudor. Por fim, o roteiro impõe sucessivas elipses – supressões de tempo entre certas tomadas – para cobrir um longo período cronológico, mas o faz desajeitadamente. O maior prejuízo é o esvaziamento dramático de circunstâncias, tais como a doença de alguém. Numa cena a pessoa diz “estou morrendo”, logo depois está entubada e, imediatamente após isso alguém anuncia sua morte. O filme é prejudicado pelo acúmulo de soluções fáceis para problemas absolutamente difíceis, nem se dando ao trabalho de abraçar o artificial como um princípio básico e norteador.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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