Crítica

Na superfície, O.J.: Made in America, de Ezra Edelman, é um filme sobre a trajetória de O.J. Simpson, homem negro numa terra profundamente racista, que encontrou no futebol americano a saída para uma vida de privações e preconceito. Astro do esporte desde a universidade, Simpson, ao se aposentar, investiu na carreira cinematográfica e de comentarista televisivo e, para surpresa de um país que o via como herói, mergulhou no inferno ao ser acusado de assassinar brutalmente a ex-esposa e um amigo que a acompanhava. Uma tragédia americana, como anunciado nos momentos finais desse documentário de quase oito horas de duração.

BAILEY SIMPSON COCHRAN SHAPIRO

Nesse sentido, O.J.: Made in America lembra um pouco o ótimo filme brasileiro Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei (2009), que também acompanha a ascensão ao sucesso de um jovem negro cheio de carisma e talento, seguida de sua decadência após cometer um crime (no caso, a tortura de um contador, com ajuda da polícia, em plena ditadura militar). É claro que a acusação contra Simpson é mais grave que a que pesava sobre Wilson Simonal e que Edelman tem muito mais tempo para explorar seu protagonista, mas a contraposição entre as imagens de luxo do auge dos biografados e as de suas respectivas quedas, feita de forma semelhante pelos dois documentários, os aproxima, bem como a presença, em ambos, de um debate sobre as relações entre racismo, fama e os esforços fracassados dessas duas celebridades negras de se integrarem plenamente à sociedade branca, negando a questão racial e evitando qualquer envolvimento com a política.

Num segundo nível, como dedica boa parte da narrativa ao julgamento de Simpson, transformado em espetáculo midiático à época, O.J.: Made in America está próximo da recente minissérie American Crime Story: The People vs. O.J. Simpson (2016), que reconstitui, com elenco estelar, a ida do ex-atleta aos tribunais e o circo montado ao redor desse episódio. É um filme, portanto, sobre o assassinato supostamente (e muito provavelmente) cometido por Simpson, que reconstrói, num trabalho magnífico de montagem com imagens de arquivo e entrevistas com os principais personagens do caso, uma história que marcou profundamente a sociedade norte-americana nos anos 1990.

Mas O.J.: Made in America consegue, em seu núcleo, ser sobre mais que isso. Para compreender tudo que envolveu o julgamento de O.J. Simpson, Edelman opta por narrar, paralelamente à trajetória de sucesso profissional desse personagem, a história do racismo e da violência policial contra a comunidade negra nos Estados Unidos, mais especificamente em Los Angeles, entre as décadas de 1960 e 1990. Aqui O.J.: Made in America se torna um filme verdadeiramente especial. Pois se o indivíduo é fascinante (e Edelman se dedica a todas as contradições que tornam a figura de Simpson tão atraente cinematograficamente) e se o crime do qual ele é acusado e a condução de seu julgamento são suficientemente espantosos para gerar um thriller eletrizante (que está dentro da narrativa criada pelo diretor, absurdamente envolvente e eficiente nesse aspecto), é no entendimento da estrutura social e da história de uma cidade que mora a sofisticação necessária para um olhar complexo e amplo para o caso em questão.

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Um exemplo: num momento muito forte do filme, uma senhora, negra, que foi jurada no julgamento de Simpson, diz que a absolvição dele se deu por vingança pelo ocorrido com Rodney King, taxista, negro, brutalmente espancado por policiais de Los Angeles em 1991 (os algozes de King foram inocentados por um júri de brancos). A fala dessa senhora pode gerar revolta, considerando que ela se refere ao provável culpado por dois brutais assassinatos escapando da condenação à prisão. Mas, como nesse ponto Edelman já construiu todo o histórico de violência da LAPD, já contou histórias como as de King e da jovem Latasha Harlins, de apenas quinze anos, morta pelas costas, também em 1991, por uma comerciante sul-coreana – por sua vez, condenada a uma pena leve –, o desejo de vingança da comunidade negra de Los Angeles contra a polícia e o sistema de justiça se torna bastante compreensível. Há muita dor, decorrente de um longo histórico de humilhações, na fala da entrevistada sobre os brancos passarem a entender, com o resultado do julgamento de Simpson, como era ter um dos seus assassinado e ver o responsável escapar ileso de qualquer punição.

Ao extrapolar a cinebiografia para discutir o racismo nos Estados Unidos, O.J.: Made in America se aproxima de outro documentário recente sobre o tema, A 13ª Emenda (2016), de Ava DuVernay. Ambos, inclusive, fazem uso de estratégias estéticas semelhantes para a construção de suas respectivas narrativas, unindo entrevistas com personagens da história contada a imagens de arquivo (ainda que Edelman não aposte nos grafismos visuais presentes no filme de DuVernay). Mas, enquanto A 13ª Emenda faz isso de forma bastante conservadora, apenas para provar um argumento, previamente organizado, sobre uma questão complexa, O.J.: Made in America segue caminho oposto. Mesmo que aparentemente acreditando na culpa de seu protagonista, Edelman não deseja convencer o espectador de coisa alguma. Interessa ao diretor o debate sofisticado e, por isso, árduo. O exemplo citado da reação da comunidade negra à absolvição de Simpson é o melhor possível nesse sentido. Pois mesmo apresentando todas as evidências que tornam muito provável a culpa do ex-atleta, o filme consegue produzir o entendimento das razões que levaram tantos a desejar que ele não fosse condenado – é difícil imaginar um documentário como o de DuVernay topando discutir um caso como esse, para o qual é impossível dar respostas fáceis.

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Em O.J.: Made in America emergem, portanto, duas grandes tragédias americanas: a de um casal brutalmente assassinado, provavelmente por um sujeito outrora tratado como herói; e a da devastadora violência racial que atravessa os Estados Unidos, destruindo vidas e distorcendo o funcionamento de instituições que deveriam oferecer tratamento igual a todos os cidadãos de um país que se enxerga como o mais democrático do mundo.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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