Crítica


4

Leitores


15 votos 7.8

Onde Assistir

Sinopse

Recrutado para auxiliar um chefão estrangeiro, um gângster indiano acaba pego por dilemas morais severos. Uma vez trabalhando para esse supremacista branco contrário aos imigrantes, ele precisará escolher seu lado na batalha.

Crítica

Durante sua rica e diversificada história, Hollywood acabou ajudando a disseminar uma noção infelizmente bastante perpetuada de que os fins justificam os meios. Senão vejamos. Quantas vezes você assistiu a filmes em que uma pessoa pegou em armas para vingar-se e com isso aplacar a própria dor? A lei do olho por olho, dente por dente serve bem à lógica da catarse, sobretudo para o espectador se sentir momentaneamente confortável diante de um falso equilíbrio, porém está longe de ser aplicável como modelo para construir sociedades mais justas. Em O Gângster Nômade, uma das inúmeras coisas que acontecem na tela é justamente a defesa complicada dessa ideia de que o homem em processo de transformação (vilão/anti-herói/herói) pode fazer o que bem entender por ser contra alguém pior. Suruli (Dhanush) é apresentado como capaz de qualquer coisa para cumprir suas tarefas de bandido. Infelizmente, o cineasta Karthik Subbaraj parece sem vontade de situar o comportamento brutal do sujeito dentro de um contexto que o elucide melhor, embora adiante tente exatamente ressignificar o protagonista como subproduto da violência precedente. Quando esse malfeitor entra no trem para assassinar o desafeto do chefe, o faz com a autorização do maquinista. Mas, por quê? O que poderia ser um pequeno indício de como as coisas funcionam por ali, acaba servindo a uma camada cômica.

Boa parte do começo de O Gângster Nômade é uma sucessão de circunstâncias incumbidas simplesmente de reforçar que Suruli é agressivo, debochado, esperto e, por isso mesmo, praticamente invencível. Isso fica claro na sequência em que ele escorraça os inimigos do restaurante, primeiro, a socos e pontapés, no melhor (pior?) estilo Rambo, segundo, fabricando bombas repentinamente, à lá MacGyver. Enquanto a trama está na Índia, o filme se esforça para preservar uma atmosfera de leveza, típica das produções de Bollywood, nas quais frequentemente dramas e tragédias são diluídas na aventura. Aliás, o casamento é tão avulso que simplesmente atende a outra convenção do cinema local, ou seja, a quase obrigatoriedade do respiro marcado por cores, coreografias e canções agitadas. O realizador sequer utiliza o abandono da noiva e tudo o que acontece depois da cantoria e da celebração para adicionar nuances ao mercenário fanfarrão. A fuga da esposa é tratada pelo sujeito com desdém e pouco lamento, quase como se ele tivesse pedido uma porção de batata frita e no prato faltasse sal. É um incômodo que dura míseros instantes, nada que faça tanta diferença assim. Até essa reação poderia servir para percebermos o interesseiro como alguém que não está nem aí para vínculos afetivos? Sem dúvida, mas Karthik Subbaraj opta por fazer da breve situação somente uma peculiaridade tola.

Pensando na sua distribuição global via Netflix, O Gângster Nômade parece burocraticamente talhado para atender a expectativas orientais e ocidentais. Sim, pois tão logo Suruli chegue ao Reino Unido, tudo ganha uma gravidade que praticamente inexistia até ali. Mesmo que o filme ainda demonstre predileção por trabalhar basicamente com arquétipos e estereótipos, a intromissão do protagonista na briga de gangues adquire sintomas antes nem citados. Levado à Inglaterra para servir a um supremacista branco – interpretado com gosto de deliberada caricatura por James Cosmo –, o personagem de Dhanush demora bastante para ser pego por um dilema moral logo escancarado. Isso, pois seu alvo é um líder indiano e o contratante um asqueroso que está entre os poderosos que trabalham nos bastidores para colocar empecilhos na vida dos imigrantes. Evidentemente, a ignorância do estrangeiro é fruto de séculos de opressão, por isso ele inicialmente não vê qualquer problema em chacinar conterrâneos se isso significar encher os bolsos de dinheiro. No entanto, novamente, parece que o cineasta tem receio de abraçar com vigor esse discurso margeado, mantendo-o ao largo da ação e das circunstâncias desenvolvidas com rapidez e sem profundidade. Nesse sentido, apenas quando o amor bate à porta do rapaz manipulado é que ele finalmente entende o que precisa fazer por ali.

Em suas quase três horas, O Gângster Nômade perde inúmeras oportunidades de mostrar que não há equivalência possível entre a violência do opressor e a do oprimido. Mesmo com Suruli partindo da vida de crimes, com um pouco de boa vontade (e menos receio), Karthik Subbaraj poderia ter tornado denso esse diagnóstico que em nada prejudicaria a ação, pelo contrário. Da forma como nos são apresentadas as situações, fica parecendo que premeditações, torturas, armadilhas e outras estratégias são justificáveis porque, no fim das contas, o bandido está se tornando um suporte aos desvalidos. A diferença entre o revide em prol da sobrevivência e a simples validação da brutalidade não é tão sutil. Ademais, o filme tem sequências muito frágeis, tanto do ponto de vista técnico (sobretudo as explosões fajutas feitas em CGI), quanto do prisma dramático (como tudo envolvendo os motivos que levaram a cantora a participar da conspiração). Aliás, falando na personagem de Aishwarya Lekshmi, é impressionante como ela se encanta pela impetuosidade do protagonista decidido repentinamente a se casar. Sua atuação atende ao lugar-comum da infiltrada que acaba caindo de amores pelo alvo ludibriado. Da mesma forma, é bizarro que ela amoleça o coração do gângster curtido na selvageria ao promover um flashback que não poderia ser mais meramente explicativo e sentimentalista. No fim das contas, estamos falando de vários moralismos camuflados de boas intenções.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *