Crítica
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Sinopse
Crítica
Durante seus quase 120 minutos, O Direito de Viver vai se consolidando como uma experiência penosa e desagradável dos pontos de vista cinematográfico, ético e moral. O longa-metragem dirigido por Cathy Allyn e Nick Loeb pretende afrontar o direito das mulheres de realizar legalmente um aborto. E a maneira grosseira como será construído esse panfleto fica evidente já na primeira cena. Nela, o Dr. Bernard Nathanson (Nick Loeb) recebe um repórter para falar sobre sua experiência com procedimentos de interrupção de gravidez. É acintoso o jeito desdenhoso com o qual o personagem se refere à vida humana, demonstrando pouco respeito pela complexidade das gestações indesejadas e dos dilemas/traumas delas decorrentes. O doutor se refere aos fetos como “formas flácidas e cheias de sangue”, para o óbvio e não menos ostensivo espanto do jornalista chocado com tal frieza. E esse tipo de retrato chulo se repete durante toda a produção, cuja estratégia principal é mostrar as pessoas pró-escolha como indignas de qualquer consideração. Já os opositores que se autodenominam “pró-vida” são éticos e profundamente tementes a deus (algo escancarado como qualidade essencial para ser respeitado). Se ao menos a produção fosse apenas pueril em sua tentativa de propagar um ponto de vista controverso, tudo bem. Mas, ela é perniciosa, manipuladora e presta incontáveis desserviços.
O cinema não precisa “ouvir os dois lados”. Essa é uma prerrogativa jornalística. Portanto, é legítimo que O Direito de Viver defenda com unhas e dentes a sua ideologia (por mais excludente que ela seja). O que incomoda é a forma como os argumentos são desenhados. Além da citada rotulação de personagens de acordo com sua posição numa batalha jurídico-ético-religiosa, o filme não mede esforços para falsear narrativas em busca do engajamento do espectador conservador. É notório por diversas pesquisas que mulheres negras e periféricas são as mais afetadas pela criminalização do aborto. Sem alternativas, acabam obrigadas a recorrer a profissionais de capacidades duvidosas que operam na clandestinidade. Isso sem contar a sensação implícita de que são criminosas, o que lhes deixa marcas indeléveis. E o que o filme faz diante disso? Primeiro, defende a tese de que o movimento pró-escolha nasceu nos Estados Unidos como estratégia para evitar o nascimento de crianças negras. Cathy Allyn e Nick Loeb chegam ao cúmulo de mostrar uma mulher branca pregando contra a natalidade dos afro-americanos tendo uma cruz em chamas ao fundo e a plateia de membros da Ku Klux Klan. A priori, nada contra filmes de propaganda, mas que ao menos operem com certo grau de responsabilidade e sem torcer realidades para empurrar goela abaixo o seu discurso. Aqui, não ajuda a fotografia desleixada e a correção de cor que gera um efeito parecido com o daqueles filtros de Instagram que pasteurizam texturas e nuances.
A própria existência de pesquisas sobre o aborto é atacada. Em outra cena quase inacreditável de tão mal feita, dois amigos se vangloriam de ter fraudado consultas públicas e injetado dinheiro em Hollywood para influenciar a opinião pública no sentido "pró-aborto". Cathy Allyn e Nick Loeb utilizam uma disputa jurídica que chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos como desculpa esfarrapada para costurar vinhetas que atacam a interrupção de gravidezes indesejadas. E o mais tóxico é o modo como os realizadores tentam justificar posicionamentos. Vide a instrumentalização da médica negra contrária à liberdade para embutir uma deturpada lógica racial na retórica ultraconservadora. Já o protagonista é um sujeito sem qualquer densidade moral ou psicológica, tratado como um joguete que fala, age e se comporta irresponsavelmente. Ele é visto fazendo pouco caso das mulheres, falando de dinheiro durante um procedimento; sendo frequentemente arrogante, do tipo “eu salvo milhares de mulheres por dia, então me escute e cabe a boca”; e articulando a agitação das reclamantes que acabará lhe rendendo polpudos lucros (ele abre a clínica bastante frequentada). Aliás, O Direito de Viver tenta a todo custo defender que movimentos feministas são atiçados por homens gananciosos e agressivos. A cena dos baldes cheios de “fetos” mutilados é revoltante por sua imensa estupidez como artifício de convencimento.
A trama mostra duas advogadas manipuladas por homens (como se elas não tivessem condições). E essa é mais uma das estratégias ordinárias dos realizadores para tentar convencer o espectador de que abortar é hediondo. Sabem a velha história de minar a credibilidade do oponente em vez de debater contrariedades? Aliás, não bastasse o ataque aos pró-escolha e a tentativa de utilizar o discurso antirracista para justificar o conservadorismo que diariamente vitima mulheres mundo afora, o longa-metragem ainda desfere um golpe frontal contra qualquer credo não católico. Judeus e protestantes são descritos como errados por “facilitar o aborto”, enquanto os cristãos que se reportam ao Papa e à chamada Santa Sé são enxergados como exemplos de retidão moral. Para finalizar essa análise sobre O Direito de Viver, filme baseado em fatos retorcidos de modo gritante para defender teses espúrias, é importante enfatizar o quão ridículo é o protagonista. Os cineastas o colocam como comentador de cena. De tempos em tempos, a imagem literalmente congela para ele sublinhar determinados aspectos da situação que estamos vendo. Assim, induz a leitura do espectador e não dá qualquer margem para complexidades e discordâncias. E para fechar essa fatura que flerta constantemente com o risível/enervante, a conversão ao catolicismo surge como uma prova “irrefutável” de que Bernard encontrou a verdade. O resultado é uma peça de propaganda retrógrada e mal feita como poucas recentes.
(Obs.: Leia a nota colocada no topo da publicação como Zero estrelas. Colocamos meia estrela para não parecer que nos esquecemos de preencher esse campo)
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Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 1 |
Alysson Oliveira | 1 |
MÉDIA | 1 |
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