Crítica

A lei da chibata fornece autoridade ao Barão do Mel (Ivo Müller). Ele compara escravos a formigas e abelhas, exigindo servidão incondicional. Sua história é antiga, replicada ao longo dos anos com uma aura de folclore. Quatro jovens vão passar alguns dias no casarão que era morada dessa figura terrífica, cujos passos e feitos ainda ecoam por aquelas bandas. A pouca idade e a inconsequência lhes permitem brincar com o inexplicável. Diz-se que a alma do outrora sádico senhor das terras foi amaldiçoada pela negra que ele engravidou. Para isso, ela teria sacrificado o recém-nascido bebê deles, com um prego encravado no umbigo, conjurando assim a danação de ambos. Os visitantes fazem chacota da tragédia, principalmente por acharem que tudo é um conto criado para impor medo, daqueles que se proliferam aos montes no interior. Em O Diabo Mora Aqui temos o típico flerte adolescente com o perigo, a deliberada provocação de forças que os incautos não acreditam existir.

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Os diretores Dante Vescio e Rodrigo Gasparini escancaram, desde o início, a existência das circunstâncias extraordinárias que para os personagens são somente fragmentos do fabulário local. Testemunhamos o Barão aterrorizando Bento (Sidney Santiago), filho da escrava considerada rainha na senzala, portanto, alguém a ser anulada e/ou dominada pelo homem branco da casa grande. Paralelo a isso, Jorge (Diego Goullart), Apolo (Pedro Carvalho), Alexandra (Mariana Cortines) e Magu (Clara Verdier) remontam à considerada lenda, reverberando o macabro nos dias atuais, tornando-se parte dos próximos eventos da luta entre os espíritos que desejam liberdade e os guardiões da maldição. O Diabo Mora Aqui possui atmosfera de terror sólida, crescente, méritos de uma direção bastante segura e consistente. Os realizadores lançam mão de elementos visuais e sonoros que amplificam sensações de pavor diante do sobrenatural, da ameaça concentrada no porão da velha casa.

O aparecimento de Sebastião (Pedro Caetano) e Luciano (Felipe Frazão) injeta urgência à trama, já que eles são os responsáveis pela manutenção dos grilhões que prendem os espectros nos seus devidos lugares. Para ajudar, invocam Bento, cadáver do escravo que rompe a terra do túmulo com as próprias mãos para cumprir a missão. O Diabo Mora Aqui ganha, então, contornos violentos. Dante Vescio e Rodrigo Gasparini não se furtam a fazer a brutalidade desaguar do psicológico para o físico, atribuindo ao sangue a função de expressar a transição do terror ao horror, que ocorre de maneira orgânica, sem os solavancos que costumeiramente impregnam os congêneres de banalidade. Contudo, o que mais contribui para a pungência do filme é o peso da ancestralidade que recai sobre todos. A evocação do passado escravagista, portanto doloroso, que deixou marcas indeléveis, aqui representadas pelo sofrimento que vai dos zeladores aos mortos, é o estofo do longa.

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Do ponto de vista formal, O Diabo Mora Aqui exibe uma inteligência incomum, principalmente no que diz respeito ao uso da câmera e da iluminação. Os ângulos oblíquos ajudam a transmitir uma ideia de anormalidade, reforçada pela luz que rareia nos momentos certos e ilumina com efeito expressivo o que emerge das sombras para intimidar. Nesse tocante, até mesmo a intermitência vinda do farol de um carro serve como pontuação visual do suspense que antecede o horror, sinal da criatividade que permeia a produção. Com muita personalidade, os diretores Dante Vescio e Rodrigo Gasparini criam uma narrativa instigante, na qual acompanhamos com interesse a disputa nutrida por rancores perpetuados para além da morte. Apresentam, assim, algo admirável, não apenas como exercício de gêneros, já que suas qualidades transcendem o bom uso/reciclagem de signos e cânones.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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