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Sinopse

Depois de um casamento de 20 anos, os jornalistas Paula e Marcos se separam. Enquanto discutem como devem seguir as suas vidas, eles testemunham um momento vital da história política do Brasil e nele se inserem a dois.

Crítica

Estreia de Caio Blat na direção de longas-metragens, O Debate assume clara e voluntariamente o papel de documento testemunhal da sua época. Isso, pois toca em questões urgentes da sociedade brasileira nessa atualidade marcada por polarizações generalizadas e pela crise sanitária sem precedentes no século 21. A trama começa na iminência do último debate entre candidatos presidenciáveis. Fala-se do situacionista que defende o uso indiscriminado de armas e que postergou a compra das vacinas por ele atacadas; já o oposicionista é citado como ocupante anterior da cadeira presidencial, alguém que ressurge no horizonte como um raio de esperança. O roteiro escrito por Jorge Furtado e Guel Arraes não dá nomes aos bois, mas tampouco faz questão de esconder que supõe o embate televisionado entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, os protagonistas são Paula (Debora Bloch) e Marcos (Paulo Betti), jornalistas da emissora de televisão prestes a transmitir o evento aguardado por milhares de brasileiros – entre eles, os quase 40% indecisos, de acordo com as últimas pesquisas. O clima tenso nessa redação filmada com dinamismo por Caio Blat remete, guardadas as devidas proporções, a Rede de Intrigas (1976), obra-prima dirigida por Sidney Lumet que também parte de questionamentos éticos para situar o jornalismo entre o exercício do poder e o compromisso social com “a verdade”.

O Debate é um título dúbio, pois não necessariamente faz menção ao programa do qual temos somente vislumbres do mediador (vivido por Caio Blat) anunciando o fim dos blocos. As conversas são entre Paula e Marcos, colegas de trabalho com modos distintos de enxergar quase todos os inúmeros tópicos abordados. O roteiro parece ávido por passar a limpo o Brasil e, às vezes, o acúmulo de itens pesa negativamente. Fica a sensação de que eles precisam debater tudo, absolutamente tudo, em voga. Uma vez que os protagonistas foram casados, esses colóquios são de cunho ideológico e sentimental. Paula é a jornalista de pensamento indubitavelmente progressista, uma mulher que parece disposta a arriscar seu emprego se isso minimizar as chances de reeleição do situacionista (equivalente a Jair Bolsonaro). Ela é a guardiã do idealismo, cujas ponderações passam pela defesa irrestrita dos direitos individuais, da necessidade de combater a pandemia pensando nos mais pobres e no compromisso da profissão com o bem comum. Já Marcos surge como uma voz ambígua, vacilante entre a ponderação e a falta de disposição pela defesa tão ferrenha de um dos lados da atual polarização. Diante da crítica à condução federal em resposta à pandemia, ele relativiza os erros com argumentos econômicos; confrontado pela defesa do isolamento social, traz à tona a parcela da população sem meios para ficar em casa; instado a romper as regras, se aproxima de defender uma imparcialidade utópica. Há uma saraivada de teses, convicções particulares e lugares-comuns.

Debora Bloch e Paulo Betti estão ótimos nos respectivos papeis que lhe cabem nessa história em que a voltagem da verborragia também sinaliza uma crise. Paula, a idealista disposta a contar verdades inconvenientes que resultam em divórcio; Marcos, o sujeito com lampejos de progressismo esquerdista em meio a uma inclinação confortável ao centrismo. Portanto, não se trata de simplificar as questões ao inviabilizar o diálogo, o que fatalmente aconteceria se tivéssemos em cena pessoas defendendo lados diametralmente opostos. O fato de o filme ser protagonizado por dois jornalistas com vieses não tão antagônicos, distanciados somente por graus de separação, evita que os assuntos abordados caiam na velha lógica da torcida futebolística – em meio à qual os argumentos perdem validade diante da supremacia das paixões previamente inflamadas. E o roteiro articula bem essa tensão sociopolítica dentro de sua equivalente pessoal, ou seja, o naufrágio do casamento é simultâneo à possibilidade de uma falência democrática. Caio Blat faz um bom trabalho como realizador debutante, criando uma dinâmica espacial capaz de evitar a fadiga que poderia decorrer da repetição de espaços e situações. Além disso, o estreante cria uma composição visual que adquire importância própria, algo que não sobrecarrega o texto com a missão de gerar os sentidos.

Mesmo que a encenação seja perspicaz, que os atores estejam bem em cena e que o texto reflita de modo afiado (ainda que um tanto engessado) os nossos impasses cotidianos, O Debate perde um pouco de força ao simplificar tópicos e investir em viradas abruptas demais. E as principais dessas “cessões repentinas” à razão do outro se referem ao personagem Paulo. Em dois momentos ele adere à opinião da ex-esposa, supostamente permitindo um consenso. Na primeira delas, suas convicções a respeito da não veiculação de uma reportagem sobre o aborto caem subitamente com a chegada da informação que obscurece hesitações como num passe de mágica. Aliás, até a inicial objeção soa forçada, levando em consideração que estamos diante de um homem de perspectiva mais alinhada ao progressismo. Na segunda dessas “cessões repentinas”, ele praticamente joga todo o seu discurso anterior no lixo ao tomar uma iniciativa intempestiva para defender o que considera correto. E aí a personagem feminina se veste com a armadura da suposta sensatez, numa inversão esquemática. Caio Blat poderia suavizar melhor as etapas dessas mudanças capitais de comportamento ou, por exemplo, diluir ao longo do filme pistas que mostrassem Paulo como alguém que viu seu idealismo esmorecer gradativamente – idealismo que, aí sim, poderia retornar bruscamente como uma erupção. Mas, mesmo com certo grau de repetição e reducionismos, o filme consegue nos manter atentos a esse debate íntimo e político.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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