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Sinopse

Em O Corvo, Eric e Shelly são almas gêmeas conectadas por um passado sombrio. Após o brutal assassinato do casal, é concedido a Eric (Bill Skarsgard) uma chance de salvar seu verdadeiro amor. Ele, então, embarca em uma jornada implacável por vingança, atravessando os limites entre o mundo dos vivos e dos mortos para corrigir erros e fazer justiça com as próprias mãos.

Crítica

O cineasta britânico Rupert Sanders já tinha feito bobagem ao transpor histórias em quadrinhos para os cinemas. Quando à frente do aguardadíssimo A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell (2017), ele simplificou a dimensão filosófica do mangá original de Masamune Shirow. Além disso, transformou as ponderações existencialistas em meras desculpas para cenas de ação com tanta emoção quanto as provocadas pelas discussões esvaziadas de seu denso significado original. Ao realizador foi confiada a missão de trazer de volta o Corvo às telonas, personagem homônimo das HQs de James O'Barr lançadas em 1989, popularizado após ganhar as telonas em O Corvo (1994), produção atualmente mais lembrada pela morte acidental do ator Brandon Lee durante as filmagens. Pegando carona na onda recente sobre figuras sombrias das histórias em quadrinhos, Sanders passa longe da pegada engraçadinha de alguns projetos cinematográficos inspirados na Nona Arte, a isso preferindo uma tragédia amorosa alusiva ao mito de Orfeu e Eurídice – o herói romântico que desce ao inferno para resgatar a sua amada. Num primeiro momento, parece acertada a decisão sobre esse tom a ser utilizado, principalmente porque ele prometia injetar alguma gravidade nessa história contada de maneiras até quase caricaturais em outras oportunidades. No entanto, Rupert Sanders não se redime com a nova versão de O Corvo.

Antes de o roteiro nos apresentar a situação atual do protagonista, vemos a perseguição à jovem Shelly (FKA Twigs), peça-chave de uma circunstância bizarra registrada em vídeo que pode comprometer a imagem pública de um figurão da alta sociedade local. Ao fugir de perseguidores, ela acaba esbarrando com a polícia (numa cena ruim) e indo parar numa instituição para viciados em drogas, onde encontra Eric (Bill Skarsgård), rapaz problemático que logo se afeiçoa à novata. Para uma abordagem que anuncia ser sombria, esse cenário onde os pombinhos se encontram é limpo demais e pouco condizente com uma situação tétrica. O local está mais para um hotel de estadia forçada onde os hóspedes são vigiados e fazem tolas dinâmicas de grupo para lidar com a raiva. Nele, a quebra do protocolo sobre a separação entre homens e mulheres não tem consequência; a condição de Shelly como perseguida não é sentida no encarceramento; a fissura da casca protetora que Eric construiu em torno de si mesmo surge de modo muito rápido e providencial; o amor que unifica os personagens erráticos é carregado de uma idealização muitas vezes forçada (e cafona), sendo menos convincente como um sentimento poderoso que afronta o limiar entre vida e morte. Sobram cenas de Eric e Shelly interagindo romanticamente depois de fugirem (facilmente demais) dessa instituição corretiva à qual ambos estavam condenados.

Repetindo o tropo narrativo da Mulher na Geladeira – aquele no qual um homem é motivado à ação pelo assassinato da companheira, cujo corpo brutalizado serve então de combustível a uma ira pretensamente reparadora –, Rupert Sanders desenha de modo preguiçoso o nascimento do Corvo dentro dessa história assumidamente de origem. Depois de ser assassinado ao lado da namorada, Eric é colocado numa espécie de limbo onde recebe todas as orientações de um sujeito enigmático que parece ciente dos mistérios para além das nossas vãs consciência e filosofia. Ao menos em três momentos posteriores o protagonista de O Corvo retorna convenientemente a esse lugar para receber toques adicionais sobre a vingança que pode garantir a salvação da alma de Shelly do sofrimento eterno. O roteiro assinado por Zach Baylin e William Josef Schneider é cheio de facilidades. Algum coadjuvante sempre sana as várias dúvidas do sujeito renascido com poderes divinos. Aliás, Eric faz perguntas diretas, nunca demonstrando uma desorientação menos óbvia ao saber que tem a capacidade de voltar à vida em versão indestrutível a fim de matar seus algozes. Se tirarmos o aspecto fantástico/sobrenatural, Eric não é tão diferente dos personagens de Charles Bronson nos filmes da saga Difícil de Matar, ou seja, o justiceiro autorizado pela dor extrema (e aqui pelo corvo) a fazer justiça com as próprias mãos.

Pouca coisa se salva nessa versão decepcionante de O Corvo. Bill Skarsgård não consegue atribuir seriedade psicológica/emocional ao protagonista. Eric é várias vezes reduzido ao sujeito que expressa sofrimento por meio de caras e bocas, distante da noção trágica do homem disposto a sacrificar a alma se isso significar uma segunda chance para a sua amada. A partir de certo momento da trama seguido por um corvo (que mais parece um drone, menos o símbolo do alterego justiceiro desse ex-interno), Eric transita de maneira lamuriosa pela cidade apinhada de pessoas querendo contrariar a divindade e o mandar diretamente ao inferno. Rupert Sanders tenta traçar a amplitude da dor do protagonista por meio dos exemplos de violência gráfica. No entanto, os inúmeros instantes em que armas perfuram, degolam, decepam e decapitam incessantemente os inimigos pouco servem para a construção da catarse comum nas histórias de vingança. A sanguinolência representada com a ajuda dos efeitos digitais não é utilizada num crescendo, sendo apenas engrossada com mais assassinatos supostamente chocantes. No fim das contas, do ponto de vista romântico, a nova incursão do Corvo nas telonas possui vários momentos piegas. Já do ponto de vista do horror, o filme é mais hesitante do que propositivo. Assim, o britânico Rupert Sanders falha novamente ao adaptar uma consagrada HQ ao cinema.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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