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Sinopse

Prestes a completar 30 anos, Lola controla sua vida pessoal com a mesma frieza e eficiência utilizada para maximizar os lucros da empresa para a qual trabalha. Todavia, ninguém conhece sua irmã mais velha, Conny, e tampouco seu histórico familiar de doença mental.

Crítica

Já vimos este filme antes. Uma workaholic declina ao ver ameaçada a redoma construída para protegê-la de vicissitudes afetivas. Todavia, em que pesem as diferenças, O Chão Sob Meus Pés, para começo de conversa, não expõe levianamente sua protagonista para garantir adesão do público. Lola (Valerie Pachner, de desempenho excelente) é uma trabalhadora inveterada que não lida bem com o fato de ter uma irmã esquizofrênica, encarando tal conjuntura como falha contornável para manter seu cotidiano cartesianamente fundamentado na eficiência. Esse comportamento, nunca tipificado, repleto de nuances, dá conta de uma visão alimentada socialmente sobre as desordens de natureza mental. Muitos acreditam que portadores de condições dessa ordem não são capazes, pois inaptos a serem considerados úteis dentro de uma coletividade que valoriza sobremaneira apenas a capacidade produtiva dos indivíduos. Isso está posto nas entrelinhas.

Nas vezes em que interage com a primogênita internada num hospital psiquiátrico, Lola oscila entre a afetuosidade e a vontade de livrar-se. A atriz consegue expressar com acuidade esse turbilhão de sensações contraditórias em choque nas visitas que se tornam, assim, episódios dolorosos. É evidente que Lola teme uma possível herança a tirando do prumo, algo escancarado a partir do instante em que a cineasta Marie Kreutzer começa a jogar habilmente com a noção de realidade dessa perturbada figura central. Telefonemas e manifestações sintomáticas têm sua veracidade questionada, e, por conseguinte, a própria sanidade mental da protagonista é colocada em xeque. Para o bem desse retrato sensível de uma personagem edificada num terreno quebradiço, tal como se permanecesse num lago congelado prestes a rachar, não há vontade de fazer diagnósticos peremptórios, mas de estudar minuciosamente um estado atravessado por diversos estímulos.

Há um dado curioso que tange ao ambiente profissional em O Chão Sob Meus Pés. Tanto Lola quanto sua namorada, e chefe, Elise (Mavie Hörbiger), ostentam uma conduta masculinizada, algo distante de qualquer estereótipo por conta de suas orientações sexuais, pois o comportamento advém da noção entranhada do que é ser bem-sucedido. Numa cena específica a mandachuvas diz que vai compor a equipe encarregada de intervir numa empresa em decadência prioritariamente com homens, a fim de dar ao cliente a sua ideia de solidez. Adiante, um colega mostra literalmente o pênis a Lola, escrachando o elemento que sempre os separará, não importando a qualificação e a dedicação de ambos. Por serem esparsas e se comunicarem de modo ligeiramente inconsistente, essas observações do ambiente laboral deturpado são menores perto do âmbito pessoal, mais contemplado. Nem a cantada que a protagonista leva ressoa muito por conta desse privilégio.

Provavelmente ciente de transitar por um caminho desgastado, Marie Kreutzer quebra deliberadamente algumas expectativas como forma de provar-se distante de certas convenções surradas. Por exemplo, quando Lola encontra um gato no apartamento da irmã, é de se esperar, de acordo com o arquétipo no qual ela se encaixa, que o bichano sofra as consequências de sua frieza. No entanto, mesmo garantindo a distância do “problema”, ela passa longe da crueldade, certificando-se de que o animal seja bem tratado e não sofra qualquer represália. Algo, aliás, que rima evidentemente com a conduta mantida com a primogênita internada. O felino desempenha um papel igualmente metafórico em outra passagem, a da ocasião em que Conny (Pia Hierzegger), a enferma, o aperta. Ela pode achar que o está protegendo, mas o machuca. Atrelando essas simbologias a um bem-vindo olhar atento aos detalhes, o filme é um ótimo estudo de personagem, não daqueles apaixonados e lancinantes, mas dos que creem na sobriedade como meio de desvelar complexidades.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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