Crítica


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Sinopse

Gawain embarca numa jornada heroica que provavelmente definirá seu caráter. Ele vai enfrentar fantasmas, ladrões, gigantes e trapaceiros para honrar uma dívida que pode significar a sua morte, mas também o seu futuro no mundo.

Crítica

A primeira coisa de destaque em A Lenda do Cavaleiro Verde é o quão escuros são os ambientes dessa história que se passa dentro do chamado Ciclo Arturiano, um imaginário construído em torno do mitológico rei Artur e dos igualmente lendários cavaleiros da távola redonda. Em vez de retratar os espaços com a ajuda de uma iluminação capaz de revelar cada detalhe, a fotografia a cargo de Andrew Droz Palermo aposta justamente na direção contrária. Portanto, temos o desenho visual de um mundo plenamente mergulhado na chamada Idade das Trevas, designação da Europa entre o século IV e o XV que aqui é retomada. A elaborada concepção de imagens sugere constantemente que estamos numa atmosfera destoante das vistas nas abordagens reverentes dessa mesma tradição. O protagonista é Gawain (Dev Patel), filho de uma bruxa e sobrinho predileto do rei (Sean Harris). Seu deslocamento inicial do prostíbulo até a respeitada residência da família traça muito bem a coexistência entre essas camadas sociais (o rasteiro e o nobre). Embora o filme não mergulhe nas sutilezas da personalidade desse aspirante a cavaleiro, é perceptível que ele não se contenta com uma posição de destaque no reino por conta do sangue azul que corre em suas veias. Chamado a sentar-se à direita do monarca, hesita por não saber se é digno de ocupar esse lugar. Aliás, o rei e a rainha (Kate Dickie) não são vistos como pessoas altivas e fulgurantes, mas quase como mortos-vivos de olheiras profundas e comportamento cansado.

Em nenhum momento o rei é chamado de Artur, ninguém se refere à távola redonda pelo título famoso e tampouco a palavra Excalibur é dita para nomear a espada poderosa que o monarca retirou da pedra como garantia do direito de governar. No entanto, é evidente a contextualização da história no Ciclo Arturiano, nessa fantasia utópica cuja característica fundamental é a virtude cavalheiresca. Nesse entorno retrabalhado como um território mergulhado em escuridão – algo reforçado pelo céu nebuloso –, são essenciais atributos como a coragem, a palavra empenhada, a retidão, a verdade e a honradez. Tanto que quando o grupo é abordado pelo Cavaleiro Verde (Ralph Ineson), personagem vindo diretamente dos recantos misteriosos e fantásticos desse universo, Gawain demonstra valentia em público por sentir a necessidade de provar-se digno da convivência com os mais nobres e valorosos homens da comunidade. Ele quer mostrar que é merecedor. Nem mesmo os fieis escudeiros do rei, guerreiros acostumados ao combate corporal, se precipitam sobre o monstro que propõe um jogo mortal de reciprocidade: o mal que for feito a ele será retribuído em um ano, ou seja, quem golpeá-lo sabe que receberá o mesmíssimo golpe num futuro próximo. O protagonista toma à frente não porque deseja fazer ou "ser", mas porque imagina que, ao menos, precisa oferecer uma evidência de "parecer".

A Lenda do Cavaleiro Verde chama a atenção pela construção visual sofisticada que serve de moldura à jornada de bravura. O protagonista atravessa cenários cheios de obstáculos que testam a sua dignidade durante o cumprimento da missão. Em princípio, Gawain sabe que está rumando à morte, mas mesmo assim vai porque é isso que se espera de um cavaleiro da távola redonda. O cineasta David Lowery é habilidoso no desenho desse itinerário que tem toques de poema épico, com direito a inimigos improváveis pela estrada e uma indefinição bem calculada entre a realidade, a fábula e as possíveis alucinações. Quando Gawain enxerga gigantes se deslocando à frente (numa cena lindíssima), isso pode ser outro indício do quão misteriosa é essa terra forjada por narrativas de heroísmo ou simplesmente o efeito colateral da ingestão de uma frutinha desconhecida que antes o fez “enxergar” a mão deformada. O roubo de seus pertences, a provação da lealdade no castelo do aristocrata que o recebe como se enxergasse uma dádiva, a valentia para afrontar o que parece ser um destino certo, tudo isso alinha o protagonista à utopia arturiana que atravessou os séculos. Nesse sentido, suas falhas morais precisam ser purgadas ao longo do trajeto para ele finalmente atingir o ideal. Curiosamente, Lowery não se vale do conceito de amor cortês, tão comum nas tramas de Artur e companhia.

Com um visual estonteante, A Lenda do Cavaleiro Verde coloca seu protagonista contra um pano de fundo ambíguo, ao mesmo tempo sublime e aterrorizante. A utilização de lentes para distorcer cenários, a quebra do eixo visual, os planos oblíquos, enfim, toda essa lógica da imagem está a serviço da realidade embaralhada entre as fábulas e os mitos. Dentro da citada colocação entre fatos, fantasias e delírios, os personagens que atravessam o caminho de Gawain podem ser lidos literalmente ou como indícios do imaginário. A lady que ameaça a pureza do candidato a cavalheiro real é interpretada pela mesma Alicia Vikander que vive a prostituta por quem ele é apaixonado. Além disso, ela também tem atitudes parecidas com as da mãe de Gawain. Há outros atravessamentos e interlocuções parecidos (alguns vitais, outros não tão fundamentais). Por fim, quando o encerramento se aproxima, o filme lança mão de um recurso que ficou célebre no clássico A Felicidade Não se Compra (1946). Sim, porque assim como no longa natalino de Frank Capra, o protagonista ganha magicamente a possibilidade de avistar como serão nefastos os desdobramentos de uma de suas alternativas. Desse modo, acaba recebendo os subsídios para fazer “a escolha certa”. Ele sabe como seria a desonra antes de decidir que mais vale morrer honradamente do que viver em desgraça. Uma pequena trapaça que, no fim das contas, coloca em xeque a virtude do derradeiro e nobre ato que o alinha aos arturianos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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