Crítica


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Sinopse

Jim se dedicou por anos a um projeto secreto dentro da empresa Arianaespace: construir um foguete capaz de fazer o primeiro voo espacial tripulado amador. No entanto, do que adiantam os sonhos se eles não são compartilhados?

Crítica

Há uma diferença sensível entre os teimosos e os obstinados. O protagonista de O Astronauta é um perseverante por natureza, alguém que nos cativa justamente por conta de sua insistência romântica em realizar o impossível. A teimosia tem um quê impertinente, mas a determinação é fascinante, especialmente quando alguém se propõe a feitos considerados irrealizáveis pelo senso comum. O protagonista dessa vez é Jim (Nicolas Giraud, também corroteirista e diretor do filme), engenheiro de propulsão que está construindo secretamente um foguete para, quiçá, ser o primeiro amador a orbitar a Terra num equipamento feito todo num fundo do quintal. Isso mesmo, sem o apoio logístico, financeiro e oficial das agências governamentais ou mesmo a verba astronômica disponível aos bilionários como Elon Musk. Qualquer pessoa com o mínimo de sensatez diria que se trata de uma tarefa fadada ao fracasso, afinal de contas o número de detalhes que podem dar errado é muito superior ao dos que podem dar certo. Jim é um sujeito daqueles que não dão ouvidos ao bom senso. Ou seria melhor dizer que ele não está disposto a se deixar guiar pelo senso comum? De todo modo, como disse o poeta Raul Seixas, “sonho que se sonha só é só um sonho, mas o sonho que se sonha junto é realidade”, então ele logo estará cercado de sonhadores inveterados assim como ele, o que transforma a missão em algo coletivo.

Primeiramente, O Astronauta isola Jim como se não fosse possível o equiparar em determinação a alguém, a não ser a avó que oferece apoio incondicional. Aos poucos, o roteiro assinado por Nicolas Giraud e Stéphane Cabel vai criando um grupo de apoio em torno do protagonista. Com exceção do astronauta veterano, Alexandre (Mathieu Kassovitz), todos os demais são amadores dando suporte ao fortemente improvável. O criador do combustível revolucionário (mas instável) é um apaixonado por aeromodelismo e um químico autodidata; a matemática responsável por calcular rotas, pontos de impacto e probabilidades foi reprovada recentemente na prova que supostamente atestaria a sua capacidade (será que ela está apta à tarefa?). Então, fica implícito que a equipe é caracterizada por certa volatilidade. Mas, o diretor Giraud não tem margem para manobrar essa incerteza, uma vez que enfatiza a presença de Alexandre como um validador. Sim, pois se há um especialista que orbitou a Terra, homem credenciado que passou por provas oficiais e treinamentos pesados para ser astronauta, atestando que o combustível incerto e os cálculos duvidosos estão corretos, isso acaba minimizando o aspecto duvidoso dos dois coadjuvantes. Como essa, outras variáveis perdem força diante do ímpeto romântico do filme, da vontade evidente de elogiar obstinados, nem que isso enfraqueça um pouco o entorno.

Enquanto batalha quixotescamente contra um sistema repleto de impeditivos, Jim tem ainda de lidar com uma tensão familiar. Seus pais são completamente contrários ao sonho que ele herdou do avô falecido, o de subir aos céus sem as condições consideradas adequadas. Nicolas Giraud aborda essa dimensão doméstica como outro obstáculo que precisa ser vencido para o protagonista finalmente conseguir romper a barreira do possível. Falta consistência a essa tensão caseira que tem pistas soltas pouco eficazes, como quando a avó de Jim dá um sermão no seu filho relutante deixando escapar que sabe onde nasceram suas aversões. Ela diz algo do tipo “não projete em Jim o que você sentia por seu pai”, deixando no ar que Gérard (Jean-Henri Compère) tinha dificuldades para conviver com a personalidade sonhadora do pai. No entanto, Giraud desenvolve de forma um tanto desleixada a oposição desse pai, pois não deixa claro se ela é fruto de um trauma pouco cicatrizado e/ou da preocupação por conta dos riscos de subir aos céus num foguete caseiro. Falta um pouco de corpo a essa construção das motivações, especialmente as dos coadjuvantes como o pai de Jim, mas também as dos companheiros de empreitada. Izumi (Ayumi Roux) quer provar algo e para quem? Para si própria? Alexander simplesmente se encanta pela persistência de Jim ou tem outro motivo para colaborar tanto?

Em que que pesem todas essas inconsistências na elaboração dos coadjuvantes – ao ponto de se tornarem suportes às intenções do protagonista –, O Astronauta apresenta uma história interessante por conta da empreitada quase impossível. Jim tem uma natureza tão perseverante que faz sentido não ser investigado em outras áreas (sentimentais, emocionais, psicológicas, etc.). Ele existe única e exclusivamente para cumprir o propósito, sem o qual seria melhor nem existir. Tendo isso em vista, Nicolas Giraud perde uma oportunidade valiosa de incutir desde cedo no espectador a dúvida sobre as intenções do protagonista, caso consiga ser bem-sucedido. Será que ele pretende realmente voltar do espaço ou, pelo fato de existir somente em função do sonho herdado do avô morto, lhe resta quase nada num eventual retorno? O roteiro trabalha de modo fragmentado com os temas, as motivações e afins, não semeando ao longo da trama elementos que poderiam frutificar para transformar o longa-metragem em algo um pouco mais complexo e nuançado do que simplesmente o retrato de um obsessivo cativante tanto por sua tenacidade quanto pela inocência própria aos sonhadores. No fim das contas, o saldo é positivo pela doçura com a qual o diretor conduz esse personagem (que ele próprio interpreta) por uma trajetória que valoriza as atitudes consideradas lunáticas pelos pragmáticos.
Filme visto no 14º Festival Varilux de Cinema Francês

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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