Crítica

Longas conversas, nas quais intelectuais discutem a relatividade de conceitos como verdade, bem e mal. Estudantes de direito, colocam em xeque até a própria definição de justiça, sobretudo Fabian (Sid Lucero), o prodigioso aluno que todos lamentam ter abandonado a faculdade. Paralelo a esses colóquios de cunho acadêmico, cujas ressonâncias práticas veremos mais adiante, o dia a dia difícil de uma família pobre, abalada ainda mais pela impossibilidade do patriarca prover o sustento. Dois universos que se chocam com violência e doses de aparente contingência. Joaquin (Archie Alemania) e sua esposa, Eliza (Angeli Bayani), se humilham constantemente para a agiota a quem devem dinheiro, penhorando bens materiais e sentimentais a fim de colocar comida na mesa dos filhos. Há sordidez na maneira como essa endinheirada trata os devedores, conduta-símbolo da frieza do capitalismo colocado acima de valores e demais atributos que não se pode comprar.

norte-fim-da-história-papo-de-cinema-01

Fabian é igualmente rebaixado pela usurária. Norte, O Fim da História sofre uma guinada quando esse ex-estudante transcende a teoria. Totalmente de acordo com sua polêmica opinião, de que bastaria matar as pessoas más para que a maldade do mundo desaparecesse, ele assassina a credora e sua filha inocente a facadas, portanto indo às vias de fato, numa sequência filmada com crueza e certo distanciamento. Pegando emprestados elementos de Crime e Castigo, obra referencial de Fiódor Dostoiévski, o cineasta filipino Lav Dias constrói com vagar e bastante consistência uma trama em que a moralidade dos personagens, bem como seus atos e intenções, são problematizados por diversos vieses, sem espaço para julgamentos categóricos. A Lei de Newton que defende toda ação ter uma reação proporcional não se aplica aqui. Joaquin, que um dia antes do crime deu motivos para dele suspeitarem, é considerado culpado e sentenciado à prisão perpétua, enquanto Fabian escapa.

Lav Dias, então, fragmenta a narrativa em três, erigindo Eliza também à protagonista, essa mulher de brios que encara praticamente sozinha a árdua tarefa de garantir o futuro dos filhos e da irmã mais nova. Testemunhamos sua labuta diária, a venda de legumes de porta em porta, enquanto acompanhamos a adaptação de Joaquin à cadeia, às regras baseadas na lei do mais forte. Aos trancos e barrancos, eles sobrevivem e seguem adiante. No outro extremo, Fabian demonstra crescente instabilidade e propensão à ruína. Nos seus 250 minutos, duração proibitiva para alguns, Norte, o Fim da História exibe cenas com impressionantes concisão e objetividade internas, paradoxo em grande parte responsável por sua pungência. Os movimentos mínimos de câmera, a elaborada construção imagética e o privilégio à contenção emocional, evidências do rigor diretivo, são contrariadas vez ou outra. Como resultado, essas exceções confirmam a regra, dando-lhe ainda mais expressividade.

norte-fim-da-história-papo-de-cinema-02

De determinado ponto em diante, o roteiro abranda a dinâmica de alternâncias, passando a deter-se demoradamente em cada uma das figuras principais. A estadia na cadeia faz a bondade de Joaquin aflorar, contradição que ressalta a real natureza desse homem saudoso dos seus, acostumado a duras penas com a ausência. Eliza ganha disposição ao assumir a chefia da família. Já Fabian segue em direção à danação, indo aos extremos e rechaçando, inclusive, os já problemáticos laços parentais. Norte, O Fim da História quebra o encadeamento de pecado e penitência, mostrando a aleatoriedade de um entorno regido sabe-se lá se por uma força invisível, onipotente e onipresente, ou apenas pelas escolhas meramente humanas e ordinárias. O destino dos personagens não é óbvio, justamente porque Lav Dias renega na essência o simplismo da relação causa-efeito, mesmo que a evoque superficialmente como isca falsa. Assim, reforça a complexidade tanto das engrenagens que movem o mundo quanto das pessoas que o habitam e o modificam invariavelmente.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *