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Sinopse

Ninotchka é uma diplomata russa, pragmática e severa, enviada a Paris numa missão oficial. Lá ela acaba se apaixonando pelo conde Leon, homem cujo estilo de vida representa tudo o que ela deveria odiar profundamente.

Crítica

O deslumbramento farsesco dos visitantes russos com a opulência do hotel parisiense, frente aos luxos do capitalismo antagônico ao regime socialista de seu país, dá o tom cômico que permeia Ninotchka do início ao fim. Seduzidos pelos cenários franceses, eles debatem rapidamente, com tiradas tão espirituosas quanto inteligentes, sobre a possibilidade de passar alguns dias bem alojados, indo assim contra as ordens de Moscou. O diretor Ernst Lubitsch mostra objetividade desde essa sequência de abertura, e uma não menos impressionante capacidade de síntese. A encenação valoriza o texto afiado do trio Charles Brackett, Billy Wilder (ele mesmo) e Walter Reisch. Imagem e palavra são aqui instâncias inseparáveis que expressam complementarmente os conflitos entre as convicções e os desejos dos personagens. A trama envolve uma contenda internacional, afinal os homens citados precisam vender as joias confiscadas de uma aristocrata que, por acaso, está exilada em Paris.

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Lubitsch faz graça com as muitas diferenças de costumes, das quais decorrem as principais situações cômicas do filme. Em meio a, e impelido por isso, ele constrói um romance que aproxima pessoas de mundos completamente distintos. Dos detalhes, como o copeiro do hotel que no passado foi um nobre, às questões mais importantes, como a crise diplomática efetivamente instaurada, tudo está impregnado de uma inequívoca consciência política, cuja existência serve à chave irônica, predominante e basilar à romântica que se impõe aos poucos. Os holofotes são essencialmente voltados ao amor improvável surgido entre a personagem que dá nome ao filme, vivida por Greta Garbo, e Léon, o bon vivant interpretado por Melvyn Douglas. No primeiro e casual encontro, enquanto ela questiona friamente números e dados técnicos, ele procura conquista-la, oferecendo um contraponto, oportunidade à convivência dos opostos que aqui, evidentemente, se atraem, porque buscam no outro o que lhes falta.

A sisuda Ninotchka não sorri, evitando a demonstração de qualquer anseio individual que contradiga a sua orientação de colocar a coletividade acima de tudo, inclusive de si mesma. Isso intriga e atrai ainda mais Léon, ele que insiste em apresentar as maravilhas de viver sob ditames menos empedernidos. Ao invés de fazer as pessoas verbalizarem tudo, Ernst Lubitsch resolve boa parte das questões na esfera do gesto e das sutilezas. Exemplo disso é a utilização dos chapéus como artefatos que simbolizam as mudanças de perspectivas, haja vista a engenhosa transição literal dos antigos às cartolas e afins no cabide, em determinada cena, ou mesmo quando a protagonista compra um exemplar extravagante por vaidade. A narrativa de Ninotchka é feita desses pequenos atalhos, cuja função é abreviar o caminho que interliga as ações e a imediata compreensão do espectador sobre os efeitos das atitudes tomadas. São indícios de uma realização notável pela aparente simplicidade, mas que transpira sofisticação.

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Na medida em que Ninotchka permite aos sentimentos tomarem o lugar cativo até então conferido apenas à ideologia socialista, seu semblante perde austeridade e ganha leveza. Famosa pela seriedade, Garbo ri quando sua personagem se deixa levar por um momento engraçado. A partir daí o romance se impõe como fator decisivo, pois barreiras são derrubadas, o que configura um ponto de virada primordial. Ernst Lubitsch faz de Ninotchka uma grande sátira política, que não se furta de zombar da cultura bolchevique e tampouco de tirar sarro da equivalente capitalista, embora demonstre simpatia pelo sistema dominante, em que o Estado, para o bem ou para o mal, em tese não influenciaria demasiado o cotidiano da população.  É um veículo e tanto para o talento de Greta Garbo, atriz que encontra em Melvyn Douglas um parceiro à altura. Em meio a documentos, regras internacionais e discussões pela posse de bens apreendidos oficialmente, bases do inteligente roteiro, surge um amor quase impossível e, por isso, transformador, componente principal do filme, motivo de sua pulsação

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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