Morte e Vida Madalena

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Sinopse

Em Morte e Vida Madalena, uma produtora de cinema está tendo de lidar ao mesmo tempo com a morte recente do pai, sua gravidez de oito meses e a produção de uma ficção científica B na qual tudo parece dar errado. Drama.

Crítica

Em Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto se debruça sobre a trajetória de um retirante nordestino, cujo nome se transforma em substantivo, em uma existência marcada pela constante proximidade com o fim devido à escassez de recursos ao seu redor. Guto Parente se apropria do título clássico para propor não tanto uma brincadeira, mas mais uma provocação. Morte e Vida Madalena conta com uma protagonista disposta a vencer qualquer adversidade que se coloque em seu caminho em nome de um sonho nem tanto seu, mas compartilhado por muitos daqueles que não mais estão ao seu lado – o pai que faleceu, o ex-marido desaparecido. E isso, veja só, por meio de um registro cômico. Tal escolha afasta de vez as possibilidades de um coitadismo histórico, revelando-se disposto a rir de si e dos outros, como que num convite a elaborar uma graça que somente a certeza da superação poderia permitir. O resultado nem sempre é bem-sucedido, mas esta não chega a ser uma questão. Muito mais importante do que o destino, é a jornada que conta.

O rei está morto, vida longa ao rei. Ou à rainha, no caso. Madalena recém se despediu do pai, cineasta de guerrilha que levou uma vida marcada pela superação e pela autoralidade, vingando suas obras através de um coletivo de nomes que nele apostaram suas forças e vontades e por meio dessa dedicação alcançaram o anseio eterno do artista: ter sua arte viva e manifesta. Com a partida do exemplo paterno, é chegada sua vez de levar adiante esse mesmo compromisso. Primeiro se vê como produtora, mas na ausência de um diretor responsável, será nesse papel que se verá ligada. Contar uma história não se trata de apenas enumerar uma cena após a outra. Diálogos soltos não compõem uma narrativa. É preciso gerar unidade, compor uma estrutura dramática que faça sentido e consiga se comunicar. Mas como conceber tal proposta quando sua própria vida particular parece estar desmoronando a cada novo passo? Entre desavenças no set entre as mais diferentes energias, tanto em frente quanto atrás das câmeras, há ainda uma gravidez prestes a chegar ao fim e um orçamento como sempre limitado, que impede voos mais altos tanto no exercício fílmico, como nas ambições pessoais. Madalena está viva, sem se dar ao luxo de esmorecer, pois se estacionada ficasse, como recomeçar?

20250914 morte e vida madalena papo de cinema

Guto Parente é um dos nomes mais constantes e produtivos de um cinema marginal brasileiro. Longas como Estrada para Ythaca (2010) e A Misteriosa Morte de Pérola (2014) o consolidaram em um circuito alternativo, de nicho e bastante específico. No entanto, desde Inferninho (2018) seus trabalhos vêm alcançando outros – e mais diversos – públicos. Esse exercício de comunicação com o espectador atinge um nível acima com Morte e Vida Madalena. Absolutamente linear, de fácil acompanhamento e formatado a partir de um encadeamento natural de ideias, o filme estabelece suas originalidades – para não dizer estranhezas – a partir das escolhas do elenco, das opções estéticas, de uma condução que combina o concreto com o apenas imaginado, em uma mistura entre realidade e ficção, como se uma não pudesse se dissociar da outra. Há a história que está sendo contada, e o tecido proposto pela fantasia é perseguido por um trupe cada vez mais mergulhada nesse acordo por eles mesmos imposto, como se em nome da obra que urge em ser realizada nada mais importasse. Um tiro pode ser tão mortal quanto apenas vislumbrado, uma transa pode ou não ter ocorrido na noite anterior, uma perseguição noturna pode ter se dado ontem ou há duas décadas. A precisão é tão elástica quanto o desejo daquele que a almeja.

Entre nomes que merecem uma atenção especial, como o eternamente anárquico Tavinho Teixeira ou uma camaleônica Nataly Rocha (Motel Destino, 2024), quem se destaca com ferocidade é a revelação Noá Bonoba (que já estava no anterior Estranho Caminho, 2023, também de Parente). É na sua expressão de resiliência e continuidade, de silencioso desespero e contínua determinação que muito do humor, como do drama, se estabelece em Morte e Vida Madalena. É ela a mulher que sonha, que não esmorece, que faz promessas que não sabe se conseguirá cumprir apenas pela vontade de que tudo dê certo. Se por vezes a piada exposta parece fazer sentido apenas num pequeno grupo de iniciados, tal impressão não será infundada. Mas há mais a se deparar do que apenas aquilo expresso num momento inicial. Guto quer se divertir, e assim o faz, junto com aqueles que com ele compartilham dessa visão. À audiência cabe embarcar nessa proposta e abraçar a ideia. O desafio está dado. E vencê-lo é menos uma questão a ser tratada e mais um acesso que se estabelece ou não. Aos demais, resta a complacência de um exercício nem sempre efetivo, mas de inegável vivacidade e pulsão.

Filme visto durante o 58º Festival de Brasília, em setembro de 2025

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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