Crítica

Na noite do dia 05 de outubro de 2001, Cristiano Burlan estava jantando com a namorada quando recebeu uma ligação. Era sua mãe, que entre muito choro e nervosismo, lhe disse as palavras que passariam a atormentar sua vida: Rafael Burlan, seu irmão, havia sido assassinado com sete tiros, numa viela de uma favela de São Paulo. Após o choque inicial da notícia inesperada, Cristiano correu ao local, assim como os demais familiares, mas não havia mais nada a ser feito. E assim ele se resignou por mais de uma década, até perceber que havia, sim, algo que poderia fazer. E o resultado é o documentário Mataram Meu Irmão, que procura investigar as situações que levaram a este trágico destino e as impressões que uma vida desperdiçada dessa forma deixou naqueles que estiveram ao seu redor.

O formato assumido pelo realizador é bastante convencional e sucinto, indo direto aos familiares e amigos mais próximos e deixá-los completamente à vontade para que falassem sobre suas lembranças a respeito daquela noite em específico e do jovem Rafael, que tinha apenas 22 anos quando foi morto. Não há muitas perguntas, uma direção de fotografia estudada ou uma edição frenética. Muito pelo contrário, estamos longe do jornalismo investigativo ou de um olhar sensacionalista. O objetivo é transformar esta estatística, tão comum nas grandes cidades, em algo diferente e especial. Afinal, para estas pessoas em questão, ela foi. Por mais indiferente que possa soar ao espectador.

E o que descobrimos? Rafael era um jovem, literalmente, sem eira nem beira. Filho de um pai alcóolatra e de uma mãe sem controle sobre os filhos, não estudou e nem possuía uma profissão constituída. Vivia de pequenos golpes, como roubar carros para traficantes barra pesada. Certo dia, se sentindo lesado após uma contravenção pela qual ganhou menos do que considerava justo, foi cobrar o que considerava ser seu direito. Como resultado, terminou assassinado a sangue frio e descartado numa esquina escura, em meio ao lixo das redondezas. Mas esta não era a primeira vez que ele se envolvia com pessoas perigosas. Antes, já fora obrigado a se mudar de cidade para fugir de ameaças, e atualmente andava experimentando crack com a ciência dos irmãos e familiares. Era uma pessoa, portanto, que qualquer um poderia prever o fim que teria. De igual a tantos outros, no entanto, ele se torna único. Não pelo que fez ou como viveu, mas pela forma como deixou sua marca. É o que fica após sua partida que irá fazer a diferença.

Apesar do tom assumido em primeira pessoa do título Mataram Meu Irmão, é curioso perceber que pouco ficamos sabendo do realizador, que mal aparece em frente às câmeras, na maioria das vezes apenas de relance. São poucos e pontuais os momentos em que ele se pronuncia, deixando que sua voz se faça através dos outros. Rafael, também, acaba assumindo uma posição idealizada, pois não há fatos sobre ele – nem mesmo uma foto nítida – somente as impressões e achismos de quem o conheceu. Dessa forma, o filme se revela um interessante exercício cinematográfico, de objetivos claros e méritos reconhecidos, mas distante da carga emocional que poderia oferecer. É, em última análise, mais um estudo de caso do que um meio de tentar justificar a uma vida que se foi de maneira estúpida e desnecessária. Mas talvez essa lógica seja o verdadeiro sentido deste relato tão pessoal e, assim mesmo, universal.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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