Crítica

Philippe Mars (François Damiens) é, sem dúvida, um das pessoas mais tolerantes do cinema recente. Afinal de contas, quem abrigaria em casa o ex-colega de trabalho recém-fugido de um hospital psiquiátrico, que pouco antes lhe cortou a orelha durante um ataque de fúria? Esse é apenas um exemplo da indulgência do protagonista de Más Notícias para o Sr. Mars, comédia franco-belga com um molho especialmente agridoce dirigida por Dominik Moll. Boa parte do filme parece ser um verdadeiro e árduo teste à paciência do homem que tem sobrenome de planeta. Aliás, os recorrentes sonhos de ser astronauta no vácuo permitem uma metáfora de sua realidade, pois, com o transcorrer do tempo, entendemos que a condição dele tem a ver com uma passividade difícil de ser alterada. É como se o Sr. Mars não reagisse por puro senso de autopreservação, evitando conflitos e quaisquer eventos que possam tirá-lo da zona de conforto criada como um casulo para ele lidar “melhor” com as inevitáveis intempéries.

A alegoria do cosmonauta à deriva no espaço também alude às transformações sociais das quais Philippe se sente alheio. Dominik Moll investe, em diversos momentos, na construção dessa inadequação, especialmente quando o protagonista interage com os filhos jovens. Confrontado pela primogênita, que só pensa em estudar para ter uma vida confortável e ser diferente do pai “loser”, desafiado pelas ideias progressistas do caçula, vegetariano às voltas com a precoce iniciação sexual, esse homenzarrão interpretado excepcionalmente por François Damiens se percebe, figurativamente, como alguém visitando locais desconhecidos. Contudo, Más Notícias para o Sr. Mars dedica muito mais tempo ao delineamento do caráter complacente e praticamente inerte do personagem principal que à exposição profunda dos efeitos-colaterais dessa forma de encarar a vida. Então, a graça, especialmente na primeira metade do longa-metragem, é tentar adivinhar até que ponto ele aguentará tudo aquilo.

Se Philippe é essencialmente cordial e centrado, nem que para sustentar tal condição tenha de arriscar a paz de seu cotidiano, o ex-colega de escritório, Jérôme (Vincent Macaigne), é quase seu oposto, já que, possíveis desequilíbrios mentais à parte, tende a ser guiado por signos tais como o caos e a imprevisibilidade, vide a bagunça que geralmente o circunda. Más Notícias para o Sr. Mars possui alguns toques fantásticos, como a visita constante dos pais já mortos do protagonista. Os idosos sorridentes lhe dão conselhos de como prosseguir em meio à balbúrdia que toma conta do apartamento até há pouco tempo sossegado, pacato e, portanto, condizente com sua personalidade. A única função efetiva desse expediente é acrescentar ligeiramente outra camada ao abismo geracional. É um dado curioso em meio ao percurso de transformação empreendido pelo protagonista, embora o valor do filme resida bem mais na empatia criada pelos carismáticos personagens que em algum subtexto emergente.

Más Notícias para o Sr. Mars deve grande parcela de suas virtudes à interpretação de François Damiens, o mesmo que encarnou o pai surdo-mudo de A Família Bélier (2014). Ele confere a Philippe escopo suficiente para que nos compadeçamos de seu calvário, do crescente nível de ruído no seu dia a dia. Igualmente, consegue conceder nuances gradativas às mudanças, às transições que o roteiro tecnicamente prefere tratar de maneira mais abrupta. O ponto de ebulição só tem a representatividade que vemos porque Damiens evidencia a pressão se acumulando ao longo da trama, externa o peso que recai sobre os ombros de Philippe. O destino de sua jornada é fácil de antever. A mudança é inevitável, mas o fato do trajeto ser repleto de situações insólitas e bem engendradas reduz os danos do esquema logo exposto. Já imaginamos em linhas gerais o que vai acontecer, mas isso não impede nossa conexão, sobretudo com Philippe e sua adaptação a um “planeta” novo, pronto para ser desbravado.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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