Crítica


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Sinopse

Lili d’Aengy, uma moça parisiense, foge de Paris, França, para esconder a sua filha. Ao chegar a Roma, Itália, sua vida muda drasticamente após o encontro com uma professora que implementou um novo e revolucionário método educativo para crianças com dificuldades de aprendizagem: Maria Montessori.

Crítica

Pelo título em português, poderíamos esperar que Maria Montessori: Ensinando com Amor fosse mais um daqueles filmes que celebram de maneira entusiasmada e edificante a vocação dos professores, no estilo de Ao Mestre, Com Carinho (1967) e Sociedade dos Poetas Mortos (1989). Até mesmo porque Maria Montessori é uma figura real. Educadora, médica e pedagoga italiana, é conhecida por ter elaborado um método de ensino ainda hoje utilizado em diversas escolas – baseado na liberdade, no afeto e em estímulos para desenvolver crianças física e mentalmente. No entanto, a abordagem da cineasta Léa Todorov persegue mais o ideal implícito no título original desta produção selecionada à 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2024: La nouvelle Femme (a nova mulher, em tradução livre). A trama associa duas experiências femininas distintas, mas que convergem por força das circunstâncias, para oferecer um retrato denunciatório do machismo asfixiante na Europa do começo do século 20. Maria (Jasmine Trinca) é a cientista brilhante que trabalha numa instituição italiana especializada em crianças com alguma deficiência intelectual. Lili (Leïla Bekhti) é a cortesã francesa recém-chegada que não consegue se relacionar com a filha renegada justamente por ter um déficit intelectual. As duas se encontram, gradativamente resistem às opressões e aprendem com a vivência alheia. Isso até o encerramento conciliador.

O principal problema de Maria Montessori: Ensinando com Amor é que ele tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo, o que produz uma superficialidade geral. De um lado, pretende mostrar Maria e Lili como vítimas da sociedade machista, vide o fato de uma ser refém das vontades do namorado por conta da dependência econômica e de a outra precisar sustentar as aparências de servilismo que a permitem tirar vantagem dos pretendentes. No entanto, o diagnóstico da mulher angustiada pelas opressões masculinas é mais bem desenvolvido a partir de Maria, pois Lili tardiamente passa a ser compreendida como a detentora dos conhecimentos fundamentais para sobressair num mundo masculino e capitalista. Se essa diferença entre elas fosse pontuada mais cedo, provavelmente o filme ganharia substância como retrato amplo dessas cidadãs em marchas individuais rumo a um anseio emancipatório. Porém, a realizadora (também roteirista) prefere colocar em paralelo, antes de qualquer coisa, os conflitos da maternidade de ambas as personagens. Maria não pode conviver com o filho pequeno porque é arredia à ideia do casamento e na sociedade romana não seria bem vista se criasse a criança numa família sem o sacramento do matrimônio. Enquanto isso Lili é a típica personagem resistente à convivência com a filha que demanda cuidados especiais, aos poucos cativada pelo amor vindo da menina.

Então, o longa-metragem perde pontos por conta da dificuldade de combinar as experiências das mulheres de modo mais expressivo. As mudanças abruptas de assunto também podem ser creditadas às falhas do roteiro que contou com a colaboração de Catherine Paillé. Num momento Maria Montessori: Ensinando com Amor está focado nas barreiras impedindo Lili de ser amorosa com a filha que a pode envergonhar nessa sociedade repleta de preconceitos – a coletividade coloca um rótulo de “idiota” em todos os que possuem alguma deficiência intelectual. No outro, tenta, a partir de uma guinada repentina, mostrar Maria em seu calvário pessoal sem com isso manter a visão dela como profissional exemplar que ajuda a mudar a perspectiva da forasteira. Então, as intenções são ótimas, as interpretações são adequadas, a direção de arte torna crível essa reconstituição de época, porém falta uma costura firme entre tantos temas que acabam sendo belos (e instigantes) retalhos alinhavados numa colcha menos bonita a encorpada em sua totalidade. Fala-se de machismo, de independência da mulher, de pedagogia, de laços humanos, de solidariedade feminina, de usurpação masculina, de códigos morais criados para beneficiar o homem e, por consequência, diminuir os demais, mas sem que isso tudo forme um panorama consistente e denso. Os assuntos são excepcionais, mas a execução deixa um pouco a desejar.

No campo da maternidade, Maria Montessori: Ensinando com Amor fala sobre uma mulher em sofrimento porque é privada dessa posição, enquanto a outra tenta de todas as formas fugir à responsabilidade como mãe para manter sua vida de cortesã e, com isso, preservar a liberdade. A nova mulher à qual alude o título original dessa produção é dona do próprio nariz, capaz de lutar contra um entorno desfavorável e escolher seu destino por instrumentos próprios. Todavia, em meio a esse elogio ao anseio emancipatório das oprimidas, Léa Todorov acaba romantizando as relações mães/filhos, como se esse vínculo inquebrantável precisasse fundamentalmente ser a prioridade de ambas. Em que pese a obviedade da relevância desses laços maternos, Lili muda de modo esquemático de posição diante da sua menina antes renegada, enquanto Maria luta bravamente para conseguir ser de novo reconhecida por seu garoto em crescimento. Outro ponto que precisamos ao menos colocar em evidência é a utilização dos deficientes intelectuais como figuras coadjuvantes que existem apenas para as protagonistas serem pessoas melhores. Por exemplo, ao optar pela perspectiva da mãe ausente que aprende gradativamente a amar sua filha com déficits, a realizadora incorre num modelo desgastado de se aproveitar do elemento vulnerável e precarizado somente como trampolim ao crescimento ao outro. Feitas as ressalvas, o filme tem boas possibilidades, mas nem sempre pega melhores caminhos para as desenvolver.

Filme visto durante a 11ª 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em junho de 2024

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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