Crítica

É um contrassenso o regime salazarista, ditadura que comandou Portugal com violência e arbitrariedade por muitos anos, ter ideologicamente o conceito de família sobrepondo-se ao de cidadão na sua proposta de organização social. As práticas torpes e desumanas do governo não apenas desarticularam famílias inteiras, mas também deixaram nódoas indeléveis nos filhos dos homens e das mulheres que se insurgiram contra a autoridade. Octávio Pato, então membro do Partido Comunista Português, foi um desses indivíduos barbaramente torturados nos porões de Salazar, vivendo 14 anos na clandestinidade. Luz Obscura é o registro da história dele pelas vozes de Álvaro, Isabel e Rui, seus filhos. Os três relembram o que a memória infantil permitiu resguardar desses tempos nefastos, semelhantes aos vividos pelos brasileiros após o golpe e a instituição da ditadura civil-militar que nos pôs em cabresto por décadas.

A diretora Susana de Sousa Dias opta por uma linguagem austera para construir Luz Obscura. São raros os momentos em que aparece a imagem dos depoentes. No mais das vezes, ouvimos somente suas vozes contra fotografias de época ou registros aleatórios da natureza em curso. Enquanto um deles fala sobre as marcantes experiências de visita a Octávio no cárcere, acompanhamos o movimento das ondas enegrecidas pelo procedimento fotográfico que lhes dá um caráter tão abstrato quanto efêmero. A diretora nos obriga a encarar demoradamente os registros das pessoas presas, enquanto seus descendentes lamentam a meninice marcada por ausência e repressão, lembrando fatos que certamente não deveriam fazer parte do repertório infantil. O aspecto político, mais especificamente da crítica aos anos salazaristas, se desprende naturalmente das vozes embargadas que denotam o sofrimento ainda persistente.

Luz Obscura é um documentário rigoroso, que não faz concessões para garantir a adesão do espectador. É preciso atenção para conectar-se à simbologia decorrente da associação nem sempre evidente entre as vozes e as imagens. Em determinados instantes, Susana de Sousa Dias torna mais simples esse processo, mostrando cômodos completamente destruídos, repletos de detritos de um passado triste. Álvaro, Isabel e Rui relembram os dias na casa dos avós, que deles cuidavam, e como eram as visitas aos pais encarcerados – já que a mãe de dois também se encontrava sob a custódia da PIDE. Aliás, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado é mencionada constantemente pelos irmãos, eles que tiveram de conviver com a sigla dessa organização sinistra, dotada de poderes quase ilimitados para fazer o necessário a fim de garantir a manutenção dos ideais truculentos do ditador António de Oliveira Salazar.

Susana de Sousa Dias não se aferra a cronologias ou a quaisquer outras âncoras que porventura pudessem propiciar a calmaria da inércia. Seu documentário busca a agitação do curso bravio das águas históricas de Portugal, navegando-as com estoicismo e vagar. O ritmo predominantemente lento favorece a contemplação, mas ocasiona uma sensação recorrente de cansaço. Ao que tudo indica, revolver as terras (e a águas) portuguesas para exumar metaforicamente as ossadas das muitas vítimas da ditadura local só faz sentido para ela dentro deste itinerário, em que somos praticamente obrigados a imergir profundamente no drama dos Pato. Hoje adultos, eles se recordam dos pais presos, do clima predominante de medo que pairava na casa dos avós, do sofrimento das mães que nunca mais viram os filhos vivos. Enfim, o filme nos dá um exemplo da barbárie salazarista, fruto desse regime totalmente desumano.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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