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Sinopse

Um grupo de libertinos franceses foge do governo conservador de Luís XVI em 1774. Com o desejo de exportar à Alemanha sus filosofia libertina, eles rejeitam sumariamente os valores morais e a ideia de autoridade. Porém, para convencer os alemães sobre suas ideias, precisarão de métodos mais sofisticados.

Crítica

Os personagens de Liberté são apartados da corte francesa do rei Luís XVI por serem libertinos e, assim, destoar do puritanismo vigente naquela sociedade hipócrita. São vagantes noturnos que, mesmo nutrindo convenções que os prendem ao ideal burguês – vide vestes e perucas características –, se permitem viver de uma forma menos controlada por ditames e regras de etiqueta. Seus interesses imediatos se distanciam das questões comezinhas, tais como a organização a partir de castas e hierarquia, ainda que seja por elas condicionada. Isso fica claro pela forma como o cineasta Albert Serra borra as distinções. As pessoas são nominadas bem de vez em quando, ocasiões em que patentes e posições retornam à tona momentaneamente. Tais figuras valem o quanto pesam suas palavras e seus atos, num conjunto inclinado a valorizar certa animalidade primal, no qual sangue, suor, esperma, saliva e gozo sobrepujam, bem de longe, quaisquer títulos.

Liberté é ora nutrido, ora refém da estilização que afasta a narrativa de um lugar de equivalência estrita com a realidade. Deambulando pela floresta onde estão exilados, pois notas dissonantes numa coletividade de aparências, esses seres são como vampiros se alimentando uns dos outros, alheios aos princípios morais, guiados somente pelo prazer. Esse hedonismo é valorizado, primeiro, pela palavra, sobressalente aos gestos em boa parte do longa-metragem. Especialmente na metade inicial da trama, as verbalizações prevalecem, a julgar pelo terreno conferido à explanação de condutas que vão da violência extrema ao êxtase. Um fidalgo passa minutos falando que à revolução dos libertinos são necessárias mulheres como as que ele viu mantendo-se firmes diante de um esquartejamento. Não é preciso ver a cena, pois nossa imaginação é instigada pela encenação. Assim, Albert Serra trabalha com habilidade e astúcia a interação entre campo e extracampo.

Em muitos instantes, contudo, Liberté parece demasiadamente estacionado, o que auxilia a instauração de um clima entediante que eventualmente torna a fruição um tanto penosa. A ideia geral de tempo é suspensa. Embora aparentemente tudo se passe numa madrugada, não seria despropositado entender os acontecimentos ocorrendo num período cronológico mais dilatado. Esse expediente auxilia à construção da fábula orgulhosa dos procedimentos de homens e mulheres em cena, passíveis de serem considerados grotescos na medida em que pareados com engrenagens comportamentais castas. Na segunda metade do filme o realizador começa a transpor certas questões, até ali concernentes à palavra, ao âmbito imagético. Masturbações, flagelos, planos detalhes em ânus, submissos sendo urinados e concomitantemente humilhados, tudo isso passa a fazer parte do cardápio, talvez indigesto aos mais sensíveis, porém totalmente coerente com a proposta de ruptura.

A despeito das passagens em que parece “cozinhar” o espectador em banho-maria, incorrendo em repetições de articulação, Liberté, a priori, aprisiona essa singular interlocução entre Eros e Tanatos no dizer, visualmente interpondo a natureza entre o observador e o ato em curso, para, adiante, escancarar atitudes que contradizem a sociedade superficial. Na essência, nobres, valetes, moradoras de conventos e concubinas desavergonhadas habitam o mesmo espaço imaginário, delimitado somente pelos princípios desenfreados do desejo. Albert Serra radicaliza essa observação, conferindo-nos tempo suficiente para aclimatação a essa atmosfera sui generis, confrontando a celeridade contemporânea com sua proposta de dilatação que às vezes beira o insuportável. Todavia, ainda assim, é preferível um filme que sustente a sua personalidade com brios, sob o risco de perder a adesão de uma parcela da plateia, do que aqueles seduzidos pelos modismos fáceis.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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