Crítica

A vida de Florencia (Violeta Castillo) parece estar desmoronando. Em meio a uma crise financeira familiar, a jovem de 17 anos se vê integralmente responsável pelos cuidados com o irmão, Sebastián (Mauricio Vaca), que se encontra em estado vegetativo. Com a mãe (Ingrid Insensee) internada no hospital em função de uma grave doença e com a partida de Clara (Marcela de la Carrera), a enfermeira particular de Sebastián, Florencia passa os dias sozinha em casa, banhando, trocando as roupas e alimentando o irmão. Seus momentos de lazer se dividem entre os ensaios de dança ao lado de amigos e seu interesse pela cultura pop, em especial pelos quadrinhos, como Las Plantas, uma antiga HQ de ficção que dá nome ao longa.

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Estreando como cineasta, o chileno Roberto Doveris expõe claramente suas ambições artísticas, povoando com grande variedade temática uma trama que trata, sobretudo, da jornada de amadurecimento da protagonista. As aspirações elevadas de Doveris se estendem ao campo estético, onde demonstra um bom domínio técnico. Para estabelecer a atmosfera claustrofóbica que Florencia encontra dentro de seu lar, pressionada por todos os problemas que a cercam, o diretor flerta constantemente com o cinema de terror. Através das sequências visualmente bem elaboradas dos pesadelos da garota, apresentadas em planos-sequência cadenciados, é criada uma aura quase surrealista que realça o poder de sugestão das imagens. É, portanto, dessa prisão ao mesmo tempo física e psicológica que Florencia tenta escapar em busca de liberdade e de uma identidade própria.

Seja atrás dos pseudônimos utilizados para conversar em chats sobre sexo na internet ou das fantasias de personagens de animes/mangás orientais que veste para ir à Comic Con Chile, Florencia ainda se esconde de seus medos e anseios, protegendo-se da exposição plena das fragilidades de sua personalidade. Porém, acaba sendo no universo fantasioso – mais precisamente o das histórias que lê para o irmão – que a jovem encontra uma válvula de escape para sua libertação. As metáforas expressas na premissa da HQ – sobre plantas que se apossam de corpos humanos para satisfazer seu apetite carnal – são evidentes, se relacionando não só ao estado clínico de Sebastián, mas, principalmente, aos desejos da personagem principal, tratada por todos aqueles próximos a ela por seu apelido: Flor.

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Ainda que de comportamento introspectivo e silencioso, desde o início a garota deixa revelar sua curiosidade sexual. Sua libido passa a aflorar gradativamente à medida que a interação fetichista através dos chats se intensifica. Doveris retrata essas descobertas de modo bastante explícito e, nesse aspecto, é bem-sucedido. O diretor adota uma perspectiva totalmente feminina, na qual a relação com o próprio corpo, mesmo sendo explorada e tendo grande importância, é sobrepujada pela relação com seu objeto de desejo, no caso, o corpo masculino. A atração de Florencia acaba ultrapassando as limitações das câmeras dos computadores, e a garota passa a convidar os admiradores virtuais para sua casa. Lá, através dos vidros da porta – um distanciamento ainda necessário já que o temor e o perigo impregnam a narrativa permanentemente - ela observa esses homens, tomando consciência não só de seus gostos, como do poder de controle que é capaz de exercer.

Essa percepção sobre a própria força surge como uma forma de lidar com a frustração causada pelo sentimento de incapacidade diante dos fatos trágicos que orbitam sua existência. Porém, é justamente nos elementos secundários que reside a maior fraqueza do trabalho de Doveris. Ao invés de enriquecerem a construção do drama da protagonista, os temas paralelos parecem apenas desviar o foco da questão central da sexualidade, que ganha vigor no ato final – além dos problemas de saúde da mãe e do irmão, há ainda a mágoa em relação ao pai ausente, a figura misteriosa do tio, os conflitos na relação com os amigos, a preparação para o concurso de dança, o suposto interesse amoroso por um vendedor de quadrinhos. Tudo é exposto em níveis básicos por Doveris, com pouco sendo realmente desenvolvido e aprofundado.

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A cantora argentina Violeta Castillo, que debuta como atriz e também co-assina a trilha sonora, se sai bem na pele de Florencia, transmitindo com competência a dualidade da personagem – a aparente timidez em contraste com um lado lascivo – no entanto, sua atuação é amortecida pelas pretensões visuais e simbólicas de Doveris. O diretor por vezes se excede tanto no apego à estilização estética – a sequência com as animações na plateia da Comic Con, por mais que dentro do contexto de fantasia, aparenta estar deslocada do tom sombrio do resto filme, por exemplo – quanto na tentativa de impor alegorias através de imagens supostamente reflexivas. Essa escolha faz com que a interpretação minimalista de Castillo muitas vezes se confunda com certa impassibilidade, e a tentativa de atribuir um grande número de simbolismos enigmáticos a cada cena atinge um nível de abstração que apenas os torna vazios. Os silêncios, assim como o lirismo, podem servir como ferramentas para potencializar diversos significados, mas, no caso de Las Plantas, a sensação passada é a de que, na maior parte do tempo, esses elementos servem para camuflar a ausência de tais significados.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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