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Sinopse

Escondido no interior da Bolívia, um velho matador do aluguel acaba de cometer seu último assassinato. Depois de meses isolado, viaja ao interior do Paraguai onde recebe uma graúda recompensa e pensa em conhecer sua filha.

Crítica

O cinema está repleto de histórias de gente que precisa acertar contas antes de morrer. Fazer as pazes com o passado, enterrar mágoas que apertam o peito, reparar erros graves, ainda que parcialmente. Em King Kong em Asunción, o Velho (Andrade Jr.) é um matador de aluguel que deseja exatamente aparar uma série de arestas antes que uma velha companheira o alcance. A execução do sujeito num campo salino confere à sequência tom onírico. Dali para adiante, o deslocamento do homem será a pé, no trajeto com ares ora penitentes, ora de última jornada de conexão com o continente – especificamente com a Mãe Terra (Pachamama), conforme denuncia uma das canções da trilha sonora. O cineasta Camilo Cavalcante aposta numa narrativa porosa, algo potencializado pela narração de Ana Ivanova, executada em guarani, língua indígena da América do Sul que poderia unir o protagonista e o território desbravado sem a impetuosidade de antes, no compasso que a passagem do tempo impôs. Infelizmente, essa relação simbólica é negligenciada.

King Kong en Asunción, de certa forma, trabalha frustrando expectativas. Os encontros do Velho não são demarcados por aquilo que deles se espera. A visita ao amor do passado tem emoção, indubitavelmente, mas contida, sem a forte descarga emocional que podemos imaginar como inerente à situação. Tampouco a rápida conversa coma filha imbuída de mágoas serve para alguma coisa, tal como propiciar uma redenção ou talvez mitigar a angústia que os pecados colocam sobre os ombros do matador. A narradora é uma entidade onisciente, servindo para dar significado e contexto a boa parte das deambulações que soam, mesmo assim, muito apáticas na maior parte do tempo. Não fossem as falas desse ser, que apenas nos créditos finais é apresentado literalmente como a Morte em pessoa, comentando trajetos aparentemente sem possibilidade de exatidão e sucesso, a trama seria menos efetiva, pois sem pujança. De todo jeito, essa proposta existencialista de estrada funciona apenas parcialmente, inclusive pela dependência dessa voz de uma nobre explicadora.

Andrade Jr. é uma figura distante das que o cinema consagrou como matadores infalíveis, logo temíveis. Baixinho e corpulento, com olhar perdido, ele dá conta de representar esse personagem surrado por uma vida de infortúnios, em meio a qual a única solução é revidar com a mesmíssima moeda. Camilo Cavalcante, nesse processo de raspar o por ele considerado supérfluo, deixando visível somente o estritamente essencial, exagera em certos momentos capitais, deixando o conjunto excessivamente à deriva ou, em semelhante medida, dependente da relatora que conhece o protagonista como poucos. Uma vez entendido esse jogo de aproximar-se para logo despois distanciar-se das convenções atreladas a esse tipo de percurso, o filme resvala feio no trivial nos instantes em que o Velho vai fazer uma última farra regada a bebida e prostitutas na companhia do amigo das antigas. Alcunhado Barbeiro (Fernando Teixeira), é o único a quem confiar o próprio pescoço. Aliás, as duas cenas envolvendo o afogamento das mágoas nos braços de quem recebe para amar são bem ordinárias.

King Kong em Asunción refuta curvas dramáticas acentuadas, nesse processo criando sequências inteiras em que protela e projeta o desinteresse, nas quais os diálogos – em que o protagonista mais ouve do que fala – beiram o irrelevante. A única voz que efetivamente importa é a da Morte, cuja poética e sonoridade sobressaem. Ela age como uma espécie de compensação aos silêncios prolongados do homem que parece guiado pelo imperativo da transitoriedade. Nos road movie, importante, mesmo, tende a ser o trajeto. Porém, Camilo Cavalcante não explora como poderia as paisagens atravessadas pelo Velho, as pessoas e os costumes parcialmente sinalizados nas franjas como relevantes, justo dentro da dinâmica de mergulhar o protagonista numa relação com sua identidade latino-americana. Muitas conjecturas, poucas disposições. O impacto aqui depende do grau de investimento do espectador, da disposição deste por significar certas repetições e investigar algumas passagens aparentemente destituídas de porquê. Inconstante, sim, mas às vezes intrigante.

Filme visto online no 48º Festival Internacional de Cinema de Gramado, em setembro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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