Crítica
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Sinopse
O que está por trás do crescimento dos crimes de ódio no país e dos discursos de intolerância? No Brasil, que sempre foi reconhecido internacionalmente pela mistura de raças, ecumenismo de credos e até uma certa liberdade sexual, ironicamente, são cada vez mais noticiados delitos de racismo, xenofobia, homofobia e disputas sangrentas por causa de religião, futebol e até linchamentos. Observando os fatos, investigando de perto os crimes, conhecendo as vítimas, ouvindo os motivos alegados pelos algozes, podemos visualizar e refletir sobre um país que se confronta cada vez mais com suas contradições.
Crítica
Basta navegar um pouco na internet ou transitar em meios repletos de gente e, por conseguinte, de opiniões/posicionamentos distintos, até antagônicos, para constatar a existência de uma série de discursos de ódio, oriundos de e direcionados a vários lugares. Intolerância.doc, da cineasta Susanna Lira, se propõe a registrar casos de fatalidades decorrentes da violência alimentada pela intransigência de determinadas comunidades. A equipe acompanha o trabalho da Decradi – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância junto a grupos tão ecléticos quanto potencialmente pré-dispostos a protagonizar situações de extrema tensão. O começo é voltado à exposição da rivalidade entre as torcidas Mancha Alvi Verde (do Palmeiras) e Gaviões da Fiel (do Corinthians). Não há uma vontade evidente de promover investigações extensas ou mergulhos antropológicos, por exemplo, no substrato da dificuldade de respeitar o lugar e os direitos do outro. Prevalece a amostragem.
Dentro de um esquema narrativo bastante estanque, calcado, especialmente no segmento do futebol, na dinâmica ação/reação, Intolerância.doc se contenta em mostrar, sem se aprofundar nos porquês ou em algo que o valha. Assim, temos depoimentos de dirigentes das organizadas mais visadas do futebol paulista, famosas tanto pela paixão demonstrada por seus respectivos clubes quanto em virtude da agressividade que, não raro, marca suas incursões no noticiário policial. A realizadora alinhava os testemunhos para fazer do conjunto uma triste comprovação. Torcedores relatam experiências brutais no entorno de estádios, familiares choram a perda de entes queridos – mortos apenas por vestirem as camisetas das agremiações –, tudo entremeado pela fala de policiais que explanam didaticamente acerca da atuação dos bandidos infiltrados entre aqueles que saem de casa para externar sua devoção clubística. O documentário possui um engessamento que não permite transcender a denúncia.
Susanna se contenta em colher porções da intolerância a ser deflagrada, sem ampliar o leque de possibilidades que a rica temática lhe permite. São poucos os momentos nos quais ela provoca o surgimento de contradições e complexidades reveladoras, como quando flagra um ex-skinhead, que anteriormente afirmara ter largado a ideologia sectária, expressando admiração por Jair Bolsonaro, deputado federal que representa os setores mais radicais e extremos da política brasileira. Infelizmente, também, Intolerância.doc se debruça relativamente pouco sobre a fatia da sociedade que provavelmente é mais alvo de discriminações frequentes, exatamente os LGBTQ. Embora nos deparemos com a história de Renata, mulher transexual que expõe toda sorte de atrocidades sofridas, sejam elas físicas ou psicológicas, o escopo é insuficiente para constituir um painel substancial. Ao filme parece mais importante destrinchar casos factuais e emblemáticos que levaram vítimas à morte.
Por fim, Susanna escancara a hostilidade, patente na cidade de São Paulo, entre os punks e os neonazistas. Novamente, ao invés de perscrutar os meandros dessa rixa antiga, a cineasta prefere a posição passiva de observar perdas como sintomas de uma situação longe de ser resolvida. Intolerância.doc é o tipo de longa-metragem necessário como alerta, principalmente por resgatar da História recente ocorrências pontuais em que o preconceito atingiu patamares de tragédia. Contudo, se ressente de uma abordagem menos distanciada e petrificada, que pudesse, talvez, dar conta de abrir outras frentes, de tentar compreender as raízes das manifestações de repúdio, muitas vezes desumanas, a grupos diferentes. Mesmo com a atuação da Decradi sendo elevada à categoria de fio condutor, exatamente porque é da delegacia a incumbência dos casos apresentados, em nenhum momento Susanna problematiza a responsabilidade do Estado à configuração da barbárie nossa de cada dia, que ela bem exibe.
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