Hector

Crítica

Derradeira parte da chamada Trilogia da Vida Real, do diretor Edu Felistoque, Hector é centrado em Latrina (Sérgio Cavalcante), um personagem cercado de tragédia por todos os lados. Apartado da mulher e do filho pelo alcoolismo, ele retorna à polícia depois do período trabalhando como segurança particular, justamente para ajudar na investigação do caso que envolve seu último cliente, um famoso cantor, então brutalmente assassinado. Isso ocorre no passado. No presente, o protagonista deste longa-metragem prefere ser chamado pelo nome de batismo, Hector. Convertido ao evangelismo, ele perambula por São Paulo pregando a palavra de Deus, tentando mostrar, sobretudo para si mesmo, que os diversos pecados em que outrora incorreu foram deixados para trás. Felistoque divide a narrativa em atos, demarcando o périplo de Hector/Latrina com as estações de sua caminhada tortuosa e difícil.

A interpretação de Sérgio Cavalcante confere tônus dramático a muitas sequências que poderiam depor contra a verossimilhança de Hector. As pregações nas praças, por exemplo, só possuem valor por conta da convicção do ator ao encarnar esse homem desesperado para encontrar em Deus a sua redenção, já que todo o restante abarcado pelo quadro, especialmente a artificialidade dos ouvintes, deflagra debilidades na encenação. Edu Felistoque aposta no contraste entre o policial e o missionário, relação esta enriquecida pelas possibilidades de recaída. É até eficiente a maneira como o diretor aproxima a tentação do álcool e os vislumbres de um período em que Hector se afundava no vício, comprometendo num só tempo a profissão e a vida pessoal. O sofrimento ganha corpo (ainda que ligeiramente banal) a partir dessa tensão estabelecida pela fricção das realidades.

Na seara prática, o dualismo do protagonista se apresenta não apenas na utilização de alcunhas diferentes, mas também na competente caracterização. Todavia, o que mais distingue realmente os dois momentos do personagem é a concepção de Sérgio Cavalcante. O tom manso da voz de Hector é contraposto pelo nervosismo que marca a expressão de Latrina, discrepância também encontrada na forma como ele se desloca, fisicamente falando, nas duas instâncias narrativas. Hector perde força ao se deter nas ações e nas reações dos coadjuvantes, principalmente nas dos colegas agentes. Aliás, o inquérito se configura num dos calcanhares de Aquiles do filme. A caça ao assassino serial ocorre em meio a cenas com pouca vitalidade, culpa, em parte, do elenco, cujo desempenho passa ao largo de ter os atributos necessários para nos fazer acreditar no peso das situações, nas implicações de tudo aquilo.

O filme de Edu Felistoque oferece ocorrências com bom potencial dramático. Hector se arrepende dos pecados, busca na religião o bálsamo para suas feridas, sem com isso deixar de ser assombrado por sua porção mais sombria. Entretanto, a desatenção da direção com os diversos âmbitos da representação, da arte ao trabalho dos atores, esvazia o filme gradativamente. Alguns solavancos reforçam o desajeito constante, vide a conversão da prostituta imediatamente após Hector ceder aos impulsos da carne, ou seja, quando poderíamos esperar resultados mais relevantes e determinantes do flerte com as velhas dependências. Na trama é dominante a simplificação, uma tendência de oferecer soluções fáceis para problemas complexos. O que valida Hector é Sérgio Cavalcante. Ele cria um personagem interessante, até aonde lhe é permitido pela fragilidade estrutural do conjunto.

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Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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