Crítica

Kaja (Agnes Kittelsen) é uma mulher otimista, de sorriso fácil, que está muito feliz com a presença dos novos vizinhos, a quem recebe com entusiasmo até certo ponto exagerado. Mas logo vamos entender, ela é mesmo dada a expressar emoções efusivamente, talvez para se sentir aceita e querida. Seu marido, Eirik (Joachim Rafaelsen), é boa parte responsável por essa carência, já que não lhe demonstra um pingo de desejo ou atenção. O casal recém-chegado ao lugarejo castigado pela neve incessante parece ser a antítese deles. Contudo, as aparências não duram muito, sobretudo depois de alguns copos de bebida nas longas noites em que os quatro passam jogando, enquanto os filhos se distraem com brincadeiras pouco inocentes.

O que nos captura primeiro em Happy, Happy é a maneira como os personagens e suas particularidades são delineados. Rapidamente percebemos a tristeza por trás da expansividade de Kaja, algo escondido nos olhares suspeitos de Eirik ao vizinho, bem como a superficial felicidade destes novos moradores, Sigve (Henrik Rafaelsen) e Elisabeth (Maibritt Saerens). Num determinado encontro, Kaja se mostra descontente por não fazer sexo há mais de um ano. Como era de se esperar, pelo andar da carruagem, ela embarca num caso com Sigve, dando início às mudanças que virão. As transições entre os segmentos da narrativa ficam a cargo de um coro, mais ou menos como no teatro grego. O valor do efeito passa depressa de interessante a questionável, pois menos funcional que curioso.

Desse ponto da trama em diante, há uma descentralização. O roteiro se abre às visões dos outros, criando pequenos solos em que todos terão vez de mostrar mais de perto seus porquês, não apenas Kaja. O tiro sai pela culatra, pois, ao invés de intensificar nossa relação com os personagens, esse movimento reduz o interesse neles, bem como nos desdobramentos da ciranda amorosa que estremece seus relacionamentos. A fragmentação que, assim, privilegia ligeiramente os diversos pontos de vista resulta em dispersão, sem muitos efeitos benéficos no que diz respeito ao andamento da história. O marido enrustido, o amante meio perdidão e a vizinha amargurada não são cativantes como a singular Kaja, portanto, à frente, enfraquecem os acontecimentos, além de empalidecê-la.

Kaja lembra bastante a protagonista interpretada por Sally Hawkins em Simplesmente Feliz (2008), pois semelhantes suas felicidades exteriores quase infantis, ocupadas principalmente de encobrir angústias arraigadas. Assim como o coro mencionado, as brincadeiras de escravo entre o menino branco e o negro soam gratuitas, comentários soltos a respeito do preconceito que ainda paira sobre os de ascendência africana. Destacam-se positivamente as cenas em que a câmera isola feições e reações do restante, auxiliada na construção dramática pelo som extracampo. Happy, Happy merece elogios, também, por buscar inequivocamente a compreensão e não a sentença, acolhendo erros e acertos sem julgamentos ou condescendência. Um filme de boas intenções, sem dúvida, infelizmente sabotado aqui e acolá por um trajeto meio tortuoso.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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