Hamilton

12 ANOS 160 minutos
Direção:
Título original: Hamilton
Ano: 0703
País de origem: EUA

Crítica

5

Leitores

Sinopse

Alexander Hamilton foi um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América. Dono de um estilo rebelde, ele demorou a ter sua capacidade de liderança reconhecida nas guerras de independência, até investir na política e se tornar o primeiro Secretário do Tesouro no país. No entanto, a duradoura rivalidade com Aaron Burr provoca a ruína de Hamilton e sua morte precoce.

Crítica

Deve ser uma experiência deslumbrante assistir ao musical Hamilton na Broadway. A história de Alexander Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, e antigo Secretário do Tesouro na virada do século XIX, é narrada com vigor impressionante, incluindo discussões complexas sobre política, economia, o papel do país nas guerras e as transformações sociais durante os governos de George Washington e John Adams. O período é representado unicamente através de canções, em apresentações notáveis de canto e dança, sem uma pausa sequer entre cada música. Jogos de luzes, um palco giratório e outros efeitos são empregados ao longo de mais de 2h30 de duração, enquanto o criador Lin-Manuel Miranda toma a interessante liberdade de imaginar Washington, Aaron Burr e Thomas Jefferson enquanto homens negros. Trata-se de um projeto ambicioso em termos narrativos e cênicos, resultando em um dos maiores sucessos de público e crítica na história do teatro contemporâneo. Não era de se espantar que o cinema logo se apropriasse desta peça, seguindo os exemplos de Chicago (2002), O Fantasma da Ópera (2004), Cats (2019), Wicked (2021) e tantos outros.

A transposição, no entanto, produz alguns ruídos. Primeiro, seria inapropriado falar em “adaptação”, visto que a linguagem teatral não cede um milímetro sequer para se adequar ao cinema. Pelo contrário, é este quem precisa se ajustar, da melhor maneira possível, à gravação do espetáculo ao vivo. A câmera adota a postura de um espectador na plateia, porém em diferentes poltronas – ora de frente, ora à esquerda ou direita, e ainda no mezanino, mais perto e mais longe. De qualquer maneira, preserva-se a disposição frontal do palco. “Experimente a produção original da Broadway”, afirma o cartaz oficial. De fato, a Disney pretendia documentar a peça, preservá-la sem modificações. Os produtores buscam fornecer ao público, em suas casas, a sensação de se encontrar diante do musical. Por isso, preservam o apresentador solicitando ao público que desligue os telefones celulares no início, o intervalo no meio da peça, os aplausos e agradecimentos no final. Seria justo dizer que esta versão possui ambições artísticas limitadas ao recusar as ferramentas específicas do audiovisual: ela se contenta em ser a apreensão de uma peça, a comprovação de algo que existiu, um dia, em frente às câmeras. O cinema assume uma função curiosamente passiva e submissa face ao teatro.

Entretanto, disponibilizado enquanto filme, o resultado traz problemas evidentes. Primeiro, pela seleção do olhar: enquanto o palco permite que o espectador observe elementos distintos ao mesmo tempo (ele pode se atentar ao cantor principal, depois aos coadjuvantes, e então aos dançarinos, aos cenários, aos figurinos), o enquadramento consiste num recorte. Para o diretor Thomas Kail, interessam apenas os protagonistas de cada cena: quando Alexander Hamilton (Lin-Manuel Miranda) canta, é ele que vemos; quando Thomas Jefferson (Daveed Diggs) efetua sua defesa política em forma de versos, enxergamos a apresentação deste, e assim por diante. Ora, esta hierarquia impede que acompanhemos as outras vozes, e sobretudo o intenso trabalho dos bailarinos e do cenário durante os números musicais. Dispositivos como o plano-sequência possibilitam ao espectador passear o olhar durante uma cena, escolhendo o elemento onde prefere se atentar. Neste caso, com seus planos fixos e cortes secos, somente os protagonistas importam. Segundo, pelo distanciamento do dispositivo: a objetiva se encontra, na maior parte dos casos, a muitos metros do palco, privilegiando a percepção do corpo inteiro (o plano de conjunto) ao invés dos rostos, dos objetos, dos fragmentos de corpos. Por isso, a peça grandiosa se apequena em meio aos enquadramentos excessivamente abertos. A situação se torna ainda mais grave pelo lançamento em streaming: exceto pelos poucos privilegiados com acesso a um telão em suas casas, o espectador será condenado a enxergar mini personagens sobre um palco distante. Os close-ups se tornam raros, e os detalhes (de uma mão, um objeto, um corpo dançando ou uma arma empunhada) são inexistentes.

Curiosamente, a peça se prestaria a uma adaptação muito rica, no sentido cinematográfico do termo. A possibilidade de passear por entre os espaços, levar os duelos mortais às ruas, apresentar o caso extraconjugal de Hamilton e as disputas nos tribunais renderia bons frutos na mão de um cineasta experiente. O espetáculo possui, em si, recursos típicos do audiovisual, como a capacidade de “rebobinar” as cenas ou de propor uma inesperada “câmera lenta” durante um número musical. A montagem paralela permitiria revelar ações simultâneas, intensificando a tensão entre ambas (vide o destino reservado a Philip Hamilton), além de se concentrar nos momentos de dança, na riqueza das roupas, nas expressões dos talentosos atores. Em outras palavras, a primeira concessão necessária ao cinema seria abandonar a utopia da reprodução idêntica. O espectador em frente à televisão jamais terá a experiência de assistir ao musical diante de seus olhos, com os atores se entregando cena após cena. A gravação deixa de ser teatro a partir do momento em que impede a convivência entre espectador e público, quando desconstrói a unidade do espaço cênico e fragmenta o olhar.

Sem o prazer de cumplicidade teatral, nem as potências do cinema de ficção, resta um instrumento de nostalgia, um registro mais jornalístico e histórico do que propriamente artístico. Pelo menos, enquanto decalque modesto da experiência original, atesta as belíssimas vozes de Renée Elise Golsberry, Phillipa Soo, Anthony Ramos, Chris Jackson, Leslie Odom Jr. e Okierete Onaodowan; o talento natural de Daveed Diggs e Jonathan Groff para a comédia (este último, em composição hilária do Rei George); as potentes letras de Lin-Manuel Miranda entre o hip hop, o rap, o jazz e o pop; a transição harmoniosa entre números, os criativos efeitos de luz. Alguns atores, como Sydney James Harcourt, possuem uma aparição tão boa em papéis minúsculos que despertam curiosidade para vê-los em outras oportunidades. Em última instância, Hamilton reforça a marca do espetáculo e sustenta a popularidade deste. Trata-se de um produto derivado, um reforço de marketing. São como os bonecos e mochilas de super-heróis: eles não substituem os personagens reais, porém se tornam uma representação afetiva. No caso deste filme sobre o teatro sobre a História, seria uma representação da representação, decalque do decalque. Mas deve ser uma experiência deslumbrante assistir ao musical na Broadway.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *