Crítica


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Sinopse

Vítima de torturas num campo de concentração paraguaio, Celsa cobre seu corpo com as folhas de seu jardim.

Crítica

A partir de discursos propostos pela extrema-direita durante a pandemia da Covid-19, criou-se no imaginário de uma parcela da população a ideia de que a ciência pode, e deve, ser contestada. Não foram poucos os que ignoraram a complexidade do estudo médico. Mas há outro abandono recorrente que atinge não só os conservadores. Trata-se do poder curativo das ervas/plantas - espinha dorsal de Guapo'Y - gêneses de todos os compostos químicos que hoje chamamos de medicamentos. Na vida da idosa Celsa Ramirez Rodas - que foi perseguida e encarcerada quando mais jovem pela Ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai dos anos 1980 - elas foram essenciais para seu reencontro consigo mesma.

Ao invés de negar o conhecimento moderno, Celsa preferiu examiná-lo. Segundo a própria, remédios receitados através dos anos por diversos médicos pouco surtiram efeito sob suas intensas dores corporais causadas pelas torturas sofridas nos "anos de chumbo". E se chás e tererés podem revigorar seu dia-a-dia, por qual razão não se entregar de vez aos ensinamentos dos povos originários? Não se trata de negar o novo, mas sim de ir além. A veterana construiu uma terapia diária, na qual ela destrincha galhos e folhas selecionadas para fabricar seus próprios recursos. Para cada enfermidade, há maneiras diferentes de utilizá-los.

Todo esse íntimo processo é registrado com paciência pelas lentes de Sofía Paoli Thorne. Em seu segundo longa, depois de comandar há mais de uma década o documentário Mercadocuatrope (2011), a realizadora sensibiliza ao captar cada um dos afazeres cotidianos da protagonista. Sem malabarismos ou ampliações, ela apenas escolhe os melhores ângulos para registrar orgânico rememoramento dos horrores aos quais Celsa foi submetida. Em pouco mais de uma hora, as lembranças vão surgindo e a emoção surge de forma progressiva, quase que imperceptível.

Essa construção sensitiva se dá pela acertada escolha da cineasta em ignorar a tal "visita guiada" pelo passado, popularizada de vez com a onda de true crimes expositivos lançados semanalmente nas plataformas de streaming. Por exemplo: a masmorra onde a idosa viveu por anos chega a dar as caras na tela, mas o espectador não chegará a conhecê-la internamente. E, de fato, há motivos para tal? Seria digno fazer a vítima retornar ao local do crime para apenas especificar cada prática desumana sofrida? Talvez sim, para o público menos atento. Mas Paoli Thorne elimina essa possibilidade.

Celsa Ramirez Rodas é mais do que mera mensageira. Ela é prova viva do que o extremismo pode provocar, mesmo que sua história tente ser apagada. Felizmente, ela encontrou uma base sólida a qual se agarrar. Eixo este que dará sentido a Guapo'Y.  E para entendê-lo, basta que cada um de nós encontre o nosso, sem negar as evidências. Até porque as mesmas mãos que fazem curar, também podem matar. É bom ter consciência.

Filme visto durante a 17ª CineBH: Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte (2023).

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Fanático por cinema e futebol, é formado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Feevale. Atua como editor e crítico do Papo de Cinema. Já colaborou com rádios, TVs e revistas como colunista/comentarista de assuntos relacionados à sétima arte e integrou diversos júris em festivais de cinema. Também é membro da ACCIRS: Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul e idealizador do Podcast Papo de Cinema. CONTATO: [email protected]

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