Crítica


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Sinopse

Lorna vive em meio a um sistema de hibernação mundial. Ela desperta a cada 300 anos e permanece 24 horas acordada. Boris, o ciborgue de manutenção, desenvolve uma profunda afeição por ela. Mas, algo está para mudar.

Crítica

A julgar pelos curtas-metragens Lux (2021) e Futuros Amantes, a cineasta Jessika Goulart tem predileção por contar histórias de mulheres isoladas em alguma medida. No primeiro filme, uma jovem encarava as pressões do mundo exterior sobre a sua imagem em (des)conformidade com a lógica das aparências cultivada nas redes sociais. Solitária, ela interagia com um extracampo agressivo, o que acentuava o seu estatuto de isolamento psicológico e emocional. No segundo filme, Lorna (Lux Négre) está em estado literal de hibernação, retirada numa fábrica abandonada que sinaliza a atmosfera distópica. Mesmo que dessa vez a protagonista tenha uma imagem com a qual contracenar – a do encarregado Bóris (Gabriel Manita) –, ainda estamos no terreno da solidão da mulher, mas agora o da mulher transexual negra. Há mais de 30 anos confinada voluntariamente para ajudar o planeta a se recuperar dos danos causados pelo homem, ela é acordada de tempos em tempos por seu guardião de fala e trejeitos robotizados.

O que primeiro sobressai em Futuros Amantes é a criatividade da direção de arte assinada por Débora Câncio para delinear esse imaginário distópico. A máscara de oxigênio de Lorna é feita com o fundo de uma garrafa pet e os equipamentos que a circundam parecem mais abandonados do que atuais. E a oxidação visível em certos locais acena à existência de um cenário alusivo à situação catastrófica da existência humana. O roteiro a cargo de Fidelys Fraga enfatiza a rotina de Lorna e Bóris, sugerindo que esta pode estar se arrastando por décadas. Nas entrelinhas dos diálogos é possível perceber isso, especialmente quando os dois conversam brevemente sobre as recorrências de comportamento. Tendo isso em vista, Jessika Goulart nos conduz por um percurso ao mesmo tempo sucinto e repleto de informações dispostas em camadas menos superficiais. E, o que parece relevante: sua câmera consegue capturar, a partir da carnalidade dos corpos, o dado de humanidade dessa realidade futurista e dada ao artificial.

A ficção científica é um gênero popular que frequentemente propõe ponderações sobre uma desumanização. Esta é resultante do crescente controle cedido às máquinas. Desse modo, emoções, ambivalências, complexidades e fragilidades perderiam espaço para uma concepção de mundo orientada pela precisão milimétrica, por tomadas de decisão pré-condicionadas, por programações infalíveis e afins. Em Futuros Amantes, Jessika utiliza a sensualidade do corpo de Lux Négre como uma ferramenta para romper com o “futuro”. A primeira cena dela se higienizando durante o breve período acordada aponta a isso. A câmera se demora nos toques, nos contatos do pano úmido com a pele convocada à hibernação, no semblante de prazer que a protagonista apresenta nessa pequena liturgia da lembrança do que é sentir. Na segunda cena desse tipo, Lorna está diante do homem com quem agora contracena presencialmente. A condição orgânica é reforçada pelo erotismo que causa diversos efeitos imediatos no cuidador.

Novamente, a câmera atenta de Jessika se detém no engolir seco que sugere o desejo. Por sua vez, esse desejo é um antídoto contra a robotização do futuro que ameaça com seus processos de padronização. Sem precisar colocar essas coisas nas bocas dos personagens, Futuros Amantes apresenta um embate velado entre o protocolo encarregado de engessar o desejo, este que, por sua vez, traz consigo a força caótica que desperta da letargia. A dublagem causa um efeito ambíguo: distancia ligeiramente ao se denunciar e cria uma nova camada de estranhamento nesse aparentemente pouco admirável novo mundo. Visualmente, o curta-metragem de Jessika Goulart é inventivo, vide as soluções criativas citadas anteriormente em consonância com os efeitos digitais que auxiliam no desenho de um imaginário consistente. Ainda dentro de uma perspectiva autoral, tendo como parâmetros este filme e Lux, Jessika parece especialmente interessada em criar tensões entre o campo e o extracampo, demonstrando nisso uma potência.

Filme visto durante o 1º Festival Internacional de Cinema de Goiânia, em maio de 2022

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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