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Sinopse

Amin é um intelectual que luta contras as memórias dolorosas do passado de refugiado na Europa. Obrigado a fugir do Afeganistão em guerra nos anos 1980, ele comeu o pão que o diabo amassou tão logo seu pai foi levado pelos extremistas, posteriormente obrigado a fugir e arriscar sua vida em constante deslocamento.

Crítica

O cenário é bem comum às obras de cunho confessional. O documentarista está sentado ao lado do entrevistado, instigando-o a contar sua história de vida. A disposição do equipamento talvez tenha a ver com o desejo de deixar o protagonista à vontade. A câmera é situada de tal modo que possa registrar frontalmente o homem deitado num divã. Aliás, a dinâmica alusiva à psicanálise (de fala/escuta) não é justificada ou mencionada, apenas disponível a quem desejar, a partir dela, ter um ganho perceptivo. Porém, o mais atípico em Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar é o fato dessa conjuntura ser provavelmente reproduzida posteriormente em animação. O cineasta Jonas Poher Rasmussen não utiliza a técnica da rotoscopia – que traceja sobre objetos e pessoas filmadas –, mas representa cenas rodadas antes. No entanto, isso se trata somente de especulação, pois ouvimos as vozes das pessoas, sem indícios inquestionáveis que confirmem/refutem isso. Fato é que as lembranças de Amin, refugiado afegão revelando sua acidentada trajetória, ganham cor e são transformadas em matéria-prima da criação. Também há espaço a liberdades poéticas que incitam o caráter lúdico, mas não como um alívio.

No que diz respeito ao desenvolvimento da trama, Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar possui tintas convencionais. Amin tece reminiscências cronologicamente, com poucos desvios de rota. Fala da infância em que demonstrava ser uma “criança diferente” (palavras dele), transitando por Cabul com as roupas das irmãs e ouvindo música pop norte-americana no walkman. Jonas Poher Rasmussen situa entre os resultados da narração do protagonista alguns documentos de época que servem para evocar a realidade histórica. Por exemplo, quando é mencionada a autonomia de ir e vir num país atualmente conhecido por ter uma parcela significativa da população sob o jugo dos fundamentalistas religiosos, vemos imagens da capital nos efervescentes anos 1980, quando ela florescia. A tragédia não é, portanto, restrita ao garoto separado sem mais aquela do pai e, logo depois desse evento traumático, obrigado a fugir para outro país com o restante da família. O Afeganistão se viu tomado de assalto, conturbado por grupos extremistas. Essa observação que igualmente tange ao coletivo é oblíqua e circunstancial, não encarada ao longo do filme, mas visível nas entrelinhas do depoimento emocionado.

Em alguns instantes, Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar se permite voos expressivos, como quando os policiais russos egressos da memória do protagonista são retratados de modo não naturalista. Jonas Poher Rasmussen permite à animação exacerbar limites ao realizar descrições como essa, em que o importante não é necessariamente o fato, mas o jeito que ele impactou a existência de Amin. O realizador alterna com variante habilidade o registro dos acontecimentos relatados verbalmente e a tentativa de emular o quê das circunstâncias diz respeito ao plano subjetivo. No mais das vezes, não expõe meandros do processo, fornecendo migalhas como o diálogo encarregado de expor a relação de amizade longeva com o entrevistado. Previamente, o aviso da produção deixa claro que tudo na telona é baseado em fatos, com a ressalva da modificação de nomes visando manter a segurança dos personagens factuais citados. O que temos é um périplo feito de inúmeros contratempos, vide a ganância dos traficantes de gente, a denúncia da corrupção policial russa, ou seja, há a construção de um painel amplo, didaticamente pavimentado para podermos compreender as agruras dos sujeitos refugiados.

O filme cresce no último terço, quando o realizador parece ter satisfeito seu desejo de esquematizar as etapas percorridas por quem buscou asilo em países não necessariamente convidativos a estrangeiros. Isso, porque começamos a ter acesso à personalidade do protagonista. Ele autodiagnostica sua dificuldade afetiva – motivo de ruídos no casamento prestes a acontecer com o homem amado –, conseguindo elaborar heranças de sua história pessoal como responsável por instaurar e/ou perpetuar os medos de apegar-se. A homossexualidade de Amin é disposta frequentemente como dado agravante à angústia pregressa. Porém, apenas nesses trinta minutos finais ganha a atenção merecida, afinal de contas estamos falando de um personagem nativo de uma sociedade em derrocada exatamente pela ascensão de valores excessivamente patriarcais. O respaldo da família, a reação inesperada do irmão mais velho à revelação que tanta aflição lhe custou, tudo isso auxilia no entendimento de quem é atualmente esse rapaz olhando para trás e, finalmente, dando conta de manifestar o turbilhão de emoções que lhe tomaram de assalto ao crescer desenraizado, descolado dos entes queridos.


Filme visto online no 26º É Tudo Verdade, em abril de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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