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Sinopse

Década de 1960. Em meio aos grandes conflitos políticos e bélicos e as grandes transformações sociais ocorridas nos Estados Unidos, Elisa, zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, conhece e se afeiçoa a uma criatura fantástica mantida presa no local. Para elaborar um arriscado plano de fuga, ela recorre a um vizinho e à colega de trabalho Zelda.

Crítica

Os momentos iniciais de A Forma da Água são dedicados a apresentar sinteticamente o cotidiano de Eliza (Sally Hawkins). Moradora de um apartamento sobre o cinema da cidade, ela é profissional de limpeza de um laboratório norte-americano subordinado ao exército. Guillermo del Toro desloca elegantemente a câmera pelos cômodos da residência, evidenciando o esmero da direção de arte e da cenografia ao delineamento de um espaço, ao mesmo tempo, acolhedor e repleto de personalidade. A trilha sonora de Alexander Desplat se impõe positivamente como auxiliar vital da construção da atmosfera lúdica, própria à improvável e central história de amor, uma metáfora da beleza da diversidade. Logo nos deparamos com uma criatura confinada, o humanoide anfíbio denominado Forma (Doug Jones). Por ser “monstro”, ou seja, diferente do padrão, o governo norte-americano o trata como trunfo para obter vantagem contra a União Soviética. O filme se passa nos anos 60, em plena Guerra Fria.

Embora se assuma como fábula de uma paixão aparentemente impossível, A Forma da Água possui uma riqueza subjacente impressionante. Esses subtextos, que alimentam o caráter mais evidente da trama e por ela são nutridos, deflagrando um processo de retroalimentação, dizem respeito exatamente à discriminação tão em voga na época, infelizmente ainda hoje um problema pandêmico. É nos detalhes que o cineasta mostra a potência da mensagem surgida a partir da comunicação gradativa entre a protagonista muda e o ser vivo considerado um Deus no seu habitat. Aliás, não é gratuito o fato de Forma ser oriundo da Amazônia, da América Latina. É mais um “imigrante” sofrendo nas mãos de quem se acha no direito de proteger os “interesses nacionais”. Strickland (Michael Shannon), chefe de segurança do laboratório, é um representante legitimado e abominável do pensamento estadunidense mais conversador, com sua predileção pelos Cadillacs e a conduta agressiva, inclusive com a esposa.

Guillermo del Toro celebra o afeto como arma para vencer os tempos nefastos. O amor de Eliza pelo Forma é embalado por músicas românticas, verdadeiros hits dos anos retratados. Sally Hawkins usa a limitação de interpretar uma mulher muda a seu favor, fazendo do rosto e do corpo ferramentas para conceber cinematograficamente uma pessoa sensível, porém aguerrida, frágil, mas igualmente corajosa. Octavia Spencer desempenha as funções de alívio cômico e braço amigo, sendo imprescindível para adicionar ternura e graça numa realização empenhada em potencializar vozes historicamente abafadas. Aí, volta-se à representação dos negros, homossexuais, proletários e estrangeiros, considerados nódoas numa nação etnocêntrica e discriminadora como os Estados Unidos. A Forma da Água utiliza os laços de afeição para dirimir a intolerância, aproveitando até mesmo o sotaque estrangeiro da colega que sempre reclama prestes a bater o ponto para pontuar que a América é, antes de tudo, feita de imigrantes.

A religiosidade, presente com frequência na fala violenta de Strickland, bem como no cinema exibindo o exemplar baseado na bíblia, oferece um dos pilares dessa falácia ianque/ocidental que a produção critica. As manifestações do desejo são, dentro dessa estrutura, um antídoto à carolice e às restrições apregoadas pelos dogmas. A Forma da Água, afora o pano de fundo brilhantemente urdido, possui uma love story emocionante, absolutamente crível, surgida do entendimento entre tipos fisicamente distintos, mas unidos pela sensibilidade de atravessar as aparências, de ver além da casca. Guillermo del Toro emprega fantasia para refletir sobre contingências e demandas reais, deixando no ar um gosto doce de nostalgia. Respaldado pelo desempenho potente do elenco, que ainda conta com Richard Jenkins num papel imprescindível, o mexicano realiza um grande filme, tecnicamente de encher os olhos, mas efetivamente maiúsculo ao afrontar o obscurantismo com bonitas manifestações de carinho.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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