Crítica

Chega a ser inacreditável que algumas questões ainda causem polêmica atualmente, especialmente no ramo artístico e no que consiste à produção cinematográfica. Minha Vida com Liberace, novo filme de Steven Soderbergh, não ganhou as telonas porque ninguém se interessou em distribuir a cinebiografia. Muitos, ao que dizem, parecem ter achado “gay demais”. Pois bem, quem falou “não” à produção deve se remoer até agora, pois além de ter sido um dos grandes vencedores da última edição do Emmy, o Oscar da televisão (ganhou os prêmios de Melhor Minissérie ou Filme para TV, além de direção e ator principal), o elogiado longa ainda trouxe algumas das melhores performances das carreiras de sua dupla de protagonistas, especialmente um quase irreconhecível Michael Douglas.

O filme narra o relacionamento entre o famoso pianista Liberace (Douglas) e seu amante mais jovem, Scott Thorson (Matt Damon), e é baseado na autobiografia deste último. Porém, o que poderia ser uma visão unilateral de um caso amoroso e dependência - em todos os sentidos - acaba ganhando vários contornos graças ao hábil roteiro de Richard LaGravenese, talvez um dos melhores de sua carreira, que conta com títulos como As Pontes de Madison (1995) e O Pescador de Ilusões (1991, trabalho inclusive indicado ao Oscar na categoria). Apesar da história ser contada sob a perspectiva de Thorson, o mesmo não assume um papel de vítima no conturbado relacionamento, o que deixa o espectador tirar suas próprias conclusões sobre como houve todo o desgaste que resultou num processo judicial.

Liberace é uma pessoa extravagante, com pedras preciosas em excesso coladas nos seus ternos, uma mansão gigantesca recheada de relíquias e uma queda por jovens. Porém, seu encantamento parece ir de acordo com sua carência afetiva ou com o que a situação lhe pede no momento. Quando surge Scott, um “encantador de animais” de filmes, o pianista atravessava uma crise com seu protegido, que não aguentava mais viver ao seu lado e, aparentemente, só estava ali por interesse. O personagem interpretado por Damon é um rapaz ingênuo, que passou metade da infância e adolescência vivendo em lares adotivos, sem vínculos estabelecidos. A ligação e confiança entre os dois é imediata, mesmo que Liberace deixe claro através de suas atitudes que é ele quem está no comando. O que, com o tempo, vai desencadear em brigas conjugais.

Ao mesmo tempo, Scott sabia onde estava se metendo, não só pelos avisos de pessoas próximas a ele e também a Liberace, mas pelo próprio modo como o pianista lhe tratava. Scott não era apenas um amante que lhe visitava toda noite. Eles moravam juntos na mansão do ricaço e o jovem ainda usufruía de vários bens e de presentes de alto valor, como carros de luxo, viagens com avião particular, etc. A impressão que se tem assistindo ao longa é que, se Liberace tinha um boy toy, alguém que ele pagava (de certa forma) para ter ao seu lado, Scott não negligenciava o que recebia, mesmo que, apesar dos pesares, a relação parecesse consistir num amor verdadeiro, independente da forma que surgiu.

Talvez este excesso autoridade de Liberace e de submissão de Scott perante algumas situações tenha sido a natureza principal do desgaste. Uma das mais absurdas é quando o pianista faz com que seu amante passe por uma cirurgia plástica para que fique igual... a Liberace! Parece uma metáfora ao ego do artista, como se, sabendo que sua juventude já havia ido embora há tempos, fosse preciso passar adiante seu legado, mas que nunca esquecessem seu rosto. Aliás, é neste momento que o espectador é apresentado a outro personagem interessante - e com uma performance incrível de Rob Lowe como o médico Jack Startz, uma espécie de Dr. Ray da época. Sua força de atuação, aliada à pesada e crível maquiagem de quem fez várias plásticas, geram alguns momentos cômicos que dão leveza a um assunto tão penoso.

Por falar em atuações, Damon tem uma interessante trajetória interna que exterioriza na forma física. Se no começo do filme ele é belo, loiro e musculoso, assim como esperançoso, aos poucos começa a engordar (e muito) em sua acomodação, para depois ter sua face “estragada” pela cirurgia, o que lhe rende rompantes de insegurança. O filme, porém, é de Douglas, que assume naturalmente a cena a cada aparição. Sua naturalidade em viver uma figura tão excêntrica é algo visível. Poderia ter caído na simples afetação, mas percebe-se que o ator realmente incorporou o personagem nos seus mínimos trejeitos, dando forma não a um clichê ambulante, mas a um homem que, ao seu modo, buscava viver com o amor de um parceiro, mesmo que sua própria personalidade impedisse.

É claro que a polêmica do filme surtiu efeito e respingou para todos os lados, inclusive Soderbergh já avisou (mais uma vez) que vai se aposentar após este trabalho (decisão que, espera-se, não deve durar muito). Mesmo que não seja uma obra-prima e chegue até a ser “quadradinho” em seu formato (se pararmos para pensar no quanto o diretor já foi mais ousado), Minha Vida com Liberace ainda é muito acima da média. É um interessante retrato de uma história de amor que, como já diria o ditado, “se começa errado, termina errado”. Pois é este o caso. Com tudo que é apresentado em tela, o público provavelmente pensará que, se as coisas tivessem iniciado de outra maneira, talvez o resultado não tivesse sido tão desastroso. Se bem que, no fim das contas, como qualquer casal, só os interessados sabem o que poderia ter acontecido – ou não.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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