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Sinopse

Brandon e Philip matam David Kentley, um colega da escola preparatória, apenas para terem a sensação de praticar um assassinato e provar que conseguem realizar o crime perfeito. Para desafiar os amigos e a família, resolvem convidá-los para uma reunião no apartamento deles, onde colocam a comida em cima de um baú onde está escondido o corpo da vítima.

Crítica

Muitos já ouviram falar de Festim Diabólico por ser um dos melhores – e mais subestimados – filmes de Alfred Hitchcock. Outros tantos o conhecem pelo seu caráter revolucionário, pela experiência narrativa e pelo inovação técnica a que se propôs em sua construção. Mas são poucos os que o reconhecem pelo seu caráter mais surpreendente: o viés homossexual de sua trama. Lançado em plenos anos 1940, a partir de um episódio verídico e adaptado da peça teatral inglesa de Patrick Hamilton, o longa trata essa questão de maneira muito subliminar, quase imperceptível a olhos não treinados. Mas o subtexto é tão forte que até astros como Gary Cooper e Montgomery Clift – ambos notoriamente gays – se recusaram a participar do projeto, mesmo tendo atuado em outros projetos do diretor, justamente por temerem se associar ao tema mais do que o necessário por suas vidas privadas. E numa época em que a Segunda Guerra Mundial tenha recém terminado e o conservadorismo norte-americano tinha mais força do que nunca, todo cuidado era pouco. Porém nada que metesse medo no cineasta, que soube encontrar os meios certos para contar essa história.

A trama de Festim Diabólico é absurdamente simples, e talvez resida justamente nessa ausência de surpresas e reviravoltas seu maior charme. Brandon (John Dall) e Phillip (Farley Granger) moram juntos e decidem cometer o crime perfeito: que não é apenas assassinar e não ser pego, mas sim adicionar a esta equação a ausência de motivos para o ato, além da ‘beleza artística’ da execução. Para tanto, decidem estrangular o amigo David Kentley (Dick Hogan), e após cumprirem o intento o acomodam num belo baú, no centro da sala. Mesmo lugar que em seguida será palco para um encontro social, um pequeno jantar entre amigos. Entre os convidados estão o pai de David, Mr. Kentley (sir Cedric Hardwicke), e a tia Mrs. Atwater (Constance Collier), que substituiu a mãe do rapaz devido a uma gripe inesperada, sua noiva, Janet (Joan Chandler), e o melhor amigo e ex-namorado da garota, Kenneth (Douglas Dick). E, por fim, o professor Ruper Cadell (James Stewart), presença que surge para provocar desequilíbrio e oferecer uma nova dinâmica entre aqueles que giram em torno da vítima e os dois algozes, todos envoltos em uma nuvem de dissimulação e desconfiança crescente.

As dúvidas começam a surgir devido ao atraso de David, afinal, a festa está acontecendo em sua homenagem – ainda que cada um dos presentes tenha seu próprio motivo para comemorá-la. Com a inquietação dos amigos do ausente, ao mesmo tempo Phillip – o assassino mais emotivo e intempestivo – começa a transparecer uma irritação com o desenrolar dos acontecimentos. Ele está arrependido, quer se livrar das visitas e voltar ao estado anterior ao ocorrido. Brandon, por outro lado, é o assassino ideal, que sabe desfrutar de cada instante e celebra através de um sorriso natural o fruto de suas ações. Um observador mais atento poderá identificar nele algum descontrole apenas quando surge o assunto da morte aleatória – baseados da teoria do super-homem, de Nietzsche, a que afirma que seres superiores poderiam se livrar dos inferiores sem o menor sentimento de culpa – e ele passa a defendê-lo com grande intensidade. E quem está com os olhos nele é justamente aquele que mais desejam – e temem: Prof. Cadell.

É mais do que evidente que Brandon e Phillip formam um casal. E é também fácil concluir que Cadell também é homossexual, graças a sua intimidade com os dois, os trejeitos entre os colegas e as histórias passadas que dividem juntos. Porém, ao mesmo tempo em que esse lado de suas personalidades está presente, ainda que dissimulado ao extremo, também é assim tratado o caráter psicopata deles. Mas se um vive no universo da teoria – e sua aproximação com a realidade o amedronta e escandaliza – os outros dois regem suas atitudes em busca de um contexto mais prático e imediato. Alfred Hitchcock não se interessaria apenas por colocar como protagonistas dois rapazes gays, nem apenas mais uma dupla de assassinos. No entanto, combinar estes dois elementos num ambiente desprovido de moral e julgamentos parece ter sido explosivo aos seus olhos. Longe de um preconceito velado, tão comum à época, o diretor constrói uma trama em que cada fator possui relevante função, e somente a união de todas estas partes isoladas poderá concluir este intrincado quebra-cabeça.

Hitchcock comprova sua genialidade também ao fazer de Festim Diabólico o primeiro longa-metragem feito inteiramente – ou quase – em plano-sequência. Além de um ou outro corte quase imperceptível, a edição se faz apenas por necessidades tecnológicas, quando a duração do rolo fílmico exigia sua substituição (o que ocorre em intervalos de aproximadamente dez minutos). É possível notar essas mudanças quando a tela fica inteiramente escura, ao se focar nas costas de um personagem, por exemplo. Ainda assim, é apenas mais um recurso utilizado pelo grande realizador para brincar com a jornada cinematográfica de cada espectador, encobrindo aos olhos de todos o que está exposto com tamanha obviedade. Sem esconder a origem teatral do texto e a ambientação ‘caseira’ da ação, outros fatores poderão apresentar uma conotação dúbia, porém nunca impassível. E neste universo, pode-se discutir tanto a integridade destes tipos quanto o deleite de aproveitar do filme, cada um à sua maneira.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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