Sinopse
Crítica
Excluídos começa com uma mulher desesperada ao telefone. Ela reclama que não tem dinheiro, mas é lembrada por seu interlocutor sobre gastos exorbitantes no cartão de crédito. Desse modo, o filme nos apresenta Neve (Ashley Madekwe) como irresponsável financeira, uma afundada em dívidas por conta de sua “mania de grandeza”. Logo depois, ela deixa um bilhete grudado na geladeira – intuímos que seja para o marido – e some sem deixar rastros. O cineasta Nathaniel Martello-White então utiliza uma elipse (supressão temporal para acelerar a trama) a fim de nos arremessar cerca de 20 anos depois, quando essa mesma mulher vive num subúrbio inglês cerca de privilégios por todos os lados. Vice-diretora de uma escola particular de prestígio, ela tem um marido devotado (e bem de vida), além de dois filhos que aparentemente não lhe dão problemas. A pergunta que fica é: o que aconteceu nesse considerável intervalo de tempo para transformar a protagonista nessa pessoa tão bem-sucedida? Mas, antes de o surgimento inesperado de duas figuras começar a preencher essa lacuna, o roteiro assinado pelo diretor enfatiza que Neve rejeita veementemente o fato de ser negra. Não é somente a peruca lisa que esconde o seu cabelo natural, mas a aversão demonstrada diante de qualquer indício da sua negritude. Portanto, tida antes como irresponsável, ela é também encarada como uma escrota.
O cinema está repleto de pessoas não necessariamente boas. E isso é ótimo, pois quebra a ideia romântica de que apenas os mocinhos e as mocinhas “merecem” o posto de protagonista. Essas figuras menos heroicas e com dubiedades morais frequentemente são mais interessantes, uma vez que iluminam aspectos obscuros da existência humana. Então, Neve poderia muito bem ser uma mulher cheia de defeitos, vista como principal responsável pela própria ruína e isso teria potencial. Desde que estivéssemos falando de um filme focado num estudo de personagem, um daqueles em que tudo gira em torno de alguém. Não é exatamente o que acontece por aqui, pois Excluídos é um filme de tese ou, melhor dizendo, um exemplar que prioriza uma discussão maior, a racial. Nathaniel Martello-White bebe na fonte do suspense e do horror para tentar sustentar as ponderações importantes a respeito da negritude dentro de um contexto dominado pela branquitude. Neve se comporta como uma típica mulher branca de um subúrbio abastado: promove encontros beneficentes para aplacar a sua consciência pequeno-burguesa, desfila com um carro de luxo e ostenta a família aparentemente perfeita. O surgimento de duas figuras negras de seu passado promove uma espécie de implosão nessa casca artificial que ela criou. Porém, é preciso ponderar como o realizador trata a protagonista. De que modo ele a enxerga?
Com a chegada de Abigail (Bukky Bakray) e Marvin (Jorden Myrie), o filme pesa mais a mão numa espécie de condenação incessante de Neve. Não bastasse ela ter sido apresentada como gastona irresponsável e depois ser compreendida na sua nova vida como alguém que despreza a negritude, ela ainda é cobrada por ter abandonado a sua antiga família. Em nenhum momento a trama abre espaços para Neve “se defender”. Por exemplo, não sabemos se realmente o seu ex-marido era violento ou o que motivou a sua debandada. Quando ela diz aos prantos “fiz uma coisa que homens fazem frequentemente”, assim trazendo à tona uma questão de gênero, Nathaniel Martello-White não permite que esse argumento seja desenvolvido. Então, ele reduz a protagonista aos seus erros, no fim das contas a responsabilizando por tudo de ruim que acontece com os demais personagens. Em nenhum momento Neve ganha espaço para expressar, quem sabe, traumas relacionados ao racismo ou pronunciar algo que a torne menos estritamente errática. Causa certo desconforto ver uma mulher negra sendo constantemente crucificada – pelo filme que sempre a julga moralmente; pelos filhos e o ex-marido que se horrorizam com seu passado até então interditado; e até mesmo por um diretor escolar (branco) que chega perto de “explicar” para a mulher negra sobre o racismo contido em certas atitudes.
Bem no fundo, Excluídos persegue um quê de Nós (2019), embora os filmes possuam alvos completamente diferentes e sejam cinematograficamente distantes como a água e o vinho. Enquanto o longa de Jordan Peele busca no fantástico os subsídios para construir uma alegoria sobre racismo estrutural e complexidade humana, o de Nathaniel Martello-White se contenta em observar duas figuras psicologicamente machucadas pelos anos de abandono no encalço de seu algoz, em meio a isso dispostos a destruir aqueles que gozam do que lhes foi tirado. A produção lançada no Brasil diretamente na Netflix esvazia o discurso racial à medida que não o mescla bem às turbulências tipicamente familiares. Assim que Abigail e Marvin se revelam e começam a colocar em prática a sua revanche, as discussões sobre racismo deixam de fazer tanto sentido como motores do conflito, se transformando em pano de fundo. Para complicar, surgem determinadas inconsistências e/ou convencionalidades, como a mulher que para repentinamente de negar a própria negritude ao ser confrontada pelo passado. Nos dois primeiros terços do filme, Neve sente desconforto ao ser confrontada pelo fato de ser mulher negra. Na terceira parte, ao ser desmascarada, ela deixa a peruca de lado e não parece mais ter dificuldades de mostrar o antes escondido cabelo natural. Em suma, uma produção com tantas boas possibilidades e instantes interessantes, mas descaracterizada na medida em que avança.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 4 |
Francisco Carbone | 7 |
Ticiano Osorio | 6 |
Alysson Oliveira | 3 |
MÉDIA | 5 |
Crítica muito bem ponderada. Gostei! Eu não gosto dessa modinha de misturar filme de suspense com pauta identitária - acaba não desenvolvendo nem uma coisa nem outra . A invasão da casa no final me lembrou um clichê repetido ek inúmeros suspenses : " vilão" invadindo casa do " mocinho " , fazendo ameaças e falando coisas totalmente sem nexo e nonsense ( vamos pedir comida chinesa ! vamos jogar jogo de tabuleiro!) Enfim , um filme com tanto potencial a ser explorado, termina reduzido a um clichê idiota que já conhecemos bem. Do final , gostei da cena da fuga , que está de acordo com a psique da personagem. Não dá pra aprofundar o tema do racismo estrutural e do passado de Neve , pq misturaram isso com suspense e o filme dura 90 minutos, pouco tempo pra fazer tudo a que se propõe . Também não entendi qual era o objetivo dos filhos renegados, sim era vingança : mas que tipo de vingança? Acabar com os dois outros filhos dela atraindo - os para o mundo do crime e das drogas ? Parecia isso , mas depois " abortaram " o plano ...enfim tudo mto confuso Quando a gente assiste a filme de suspense, a gente quer sentir aquele calafrio na espinha, aquele medo de " o que será que vai acontecer? será que ela vai escapar? etc ..." Filme de suspense não é pra " aprender " questões sociais. Eu gosto muito de abordagem de racismo em filme, mas para isso existem filmes de drama ou históricos; cada coisa no seu lugar. Um abraço!
As inconsistências não param por aí e não se resumem só final preguiçoso. Em nenhum momento o filme dá pistas sobre como os filhos de “Neve” tinham dinheiro para um hotel caro e roupas de grife ( a cena do vestido Versace) etc etc. Poderia ser um filmaço, mas não consegue superar os buracos no roteiro.
Fazia tempo que eu não assistia a um filme tão ruim!