Crítica

O início da década de 1990 foi um período de grandes transformações para a Polônia, com o fim do regime comunista abrindo um novo leque de possibilidades carregadas de expectativas e dúvidas. É neste cenário de sentimentos conflitantes que se encontram as protagonistas do terceiro trabalho do cineasta Tomasz Wasilewski, Estados Unidos Pelo Amor. Quatro mulheres em diferentes estágios da vida, mas que dividem muitos dos mesmos anseios e frustrações. Sem uma contextualização prévia, o espectador é inserido, logo na sequência inicial, nas discussões cotidianas sobre as consequências das mudanças políticas e sociais do país, acompanhando um jantar entre amigos e familiares, onde se fala sobre um marido que vive na Alemanha e acompanhou a queda do Muro de Berlim, ou ainda sobre o preço do refrigerante favorito do grupo.

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A partir desse breve momento de confraternização coletiva, Wasilewski desmembra a trama nas jornadas particulares das personagens principais, três delas apresentadas na citada abertura: Agata (Julia Kijowska), funcionária de uma videolocadora que vive um casamento infeliz e se sente atraída pelo padre da comunidade. A jovem Marzena (Marta Nieradkiewicz), cujo companheiro mudou-se para Berlim e que trabalha como professora de dança/ginástica enquanto sonha em se tornar uma modelo internacional. E Iza (Magdalena Cielecka), irmã mais velha de Marzena, diretora do colégio local, que mantém um relacionamento de seis anos com o pai, recém-viúvo, de uma de suas alunas. Finalizando o quarteto protagonista, temos a professora Renata (Dorota Kolak), que acaba de ter sua aposentadoria forçada e nutre uma paixão secreta por Marzena, de quem é vizinha.

Cada segmento acompanha uma das personagens até se conectar de alguma forma com outra, transferindo o foco. Tal estratégia narrativa reforça uma ligação não só espacial – já que dividem os locais onde habitam, trabalham etc. – e genealógica, como também de estado emocional entre essas mulheres. Todas sofrem, de modo quase integral, por amor, seja ele impossível, proibido, não correspondido ou separado pela distância. As quatro compartilham também a sensação de que, mesmo desejando um recomeço nessa nova era que se inicia em seu país, ainda estão presas a um passado arcaico, refletido tanto nos aspectos materiais – as fitas VHS da locadora que parecem ter sido copiadas clandestinamente – quanto ideológicos – a noção comum de que devem ser boas mães, esposas resignadas etc.

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Wasilewski insere elementos da cultura ocidental que invadia sua terra natal na época, como o pôster de Whitney Houston no quarto de Marzena ou as canções pop de suas aulas de dança, mas, assim como as mudanças almejadas pelas personagens, esses elementos simbolizam um objetivo inalcançável. O cineasta lança um olhar cético em relação ao futuro, abrindo raros espaços para vislumbres de felicidade, oferecendo um panorama desesperançoso que transparece em seu registro frio, tal qual o clima polonês. A fotografia dessaturada, quase toda em tons acinzentados, ressalta apenas as cores de detalhes específicos, como a malha que Agata veste para recepcionar o padre em sua casa, criando uma atmosfera artificial. A frieza também emana das relações entre os personagens, até mesmo no sexo, exposto sempre de modo pouco passional.

O rigor da cultura polonesa parece se transferir para o formalismo estético empregado por Wasilewski, com seus longos planos fixos na ação que ocorre no centro do quadro. Esse distanciamento proposital acaba se estendendo ao desenvolvimento das personagens, já que, apesar de levantar diversas questões pertinentes a serem investigadas sobre o universo feminino – da repressão sexual à independência profissional – o longa oferece um conteúdo limitado para a composição da personalidade dessas mulheres, restringindo seus dilemas àqueles relacionados aos casos amorosos. Guiadas pela irracionalidade da paixão, elas acabam sendo retratadas como obsessivas, tomando atitudes incompreensíveis, por vezes até condenáveis, e com isso Wasilewski não permite que o espectador se aproxime por completo de seus dramas.

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O que ameniza esse tratamento é o visível empenho de todas as atrizes em seus respectivos papéis, que conseguem inserir alguma dose de humanidade nas poucas lacunas abertas para a fuga do universo opressor no qual se encontram. Entre todas as ótimas atuações, a de Dorota Kolak merece destaque pela delicadeza que imprime ao arco que fecha o longa. Calada e de gestos sutis, sua Renata carrega toda a dor da solidão e do senso de deslocamento que, de maneiras distintas, domina também as outras protagonistas. Além disso, é dela aquele que talvez seja o único real momento de libertação de Estados Unidos Pelo Amor, quando toca seu corpo nu, sentindo o sol que bate à janela. Um respiro de liberdade que acaba sendo breve e limitado – como o das dezenas de pássaros da personagem, que voam por seu apartamento. Fora da gaiola, mas ainda confinados – pois Wasilewski retorna ao seu fatalismo no choque do desfecho que atinge Marzena, justamente a personagem mais sonhadora. Se não chega abertamente a punir essas mulheres por seus sonhos, o cineasta, no mínimo, parece acreditar que estão fadadas, assim como a própria Polônia, à tragédia incontornável.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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