Crítica


6

Leitores


3 votos 7.4

Onde Assistir

Sinopse

Uma celebração de Ennio Morricone, artista que mudou drasticamente a ideia sobre a música no cinema. Uma coleção de depoimentos, materiais de arquivo e citações revela o homem por trás de uma obra a ser festejada.

 

Crítica

Ennio, O Maestro é um retrato reverencial. O cineasta Giuseppe Tornatore traça um painel bastante tradicional do ponto de vista da linguagem cinematográfica utilizada. E a intenção é clara: celebrar o maestro Ennio Morricone. Em vez de escolher momentos específicos para ilustrar aspectos maiores da carreira e da personalidade desse homem que revolucionou a música feita para o cinema, o seu compatriota resolveu criar um documento extenso à posteridade. No que diz respeito ao conteúdo, o longa-metragem cria uma trajetória cronologicamente retilínea, a começar pelos relatos sobre a infância e os primeiros movimentos do futuro artista rumo à forma de expressão que o canonizou. Dentro ainda dessa ideia de um caminho conservador, por assim dizer, Tornatore costura depoimentos de pessoas que conheceram, estudaram ou mesmo colaboraram com o nobre protagonista. Em certos instantes, as falas de uns completam os apontamentos anteriores de outros, expediente que corrobora esse conservadorismo da linguagem empregada. Não há muitos espaços para controvérsias, diferenças de leitura/entendimento do personagem ou algo que crie pontos de tensão dentro da progressão narrativa. Isso porque evidentemente a ideia do cineasta italiano é justificar uma paixão, a que ele próprio sente pelo compositor da trilha sonora de Cinema Paradiso (1988), um de seus principais filmes.

Entre outras coisas a se lamentar na construção desse retrato laudatório e informativo, há a posição que Giuseppe Tornatore ocupa como criador e personagem. Em nenhum momento ele particulariza a sua relação com Ennio Morricone, a não ser quando se filma dando depoimento. Aliás, como se fosse qualquer interrogado a respeito de um mito, não o arquiteto do retrato. Ennio, O Maestro não carrega/exibe as especificidades dessa conexão entre Tornatore/Morricone, sendo basicamente um desfile de dados e confirmações sobre uma carreira que começou com imposição paterna e culminou em ovação praticamente unânime mundo afora. Feita a ressalva, o filme é bem-sucedido como síntese elucidativa de uma trajetória, pois nos dá subsídios para compreender melhor a evocação constante de Morricone como um homem que passou de modo transformador pelos séculos 20/21. Inúmeros compositores, arranjadores, ex-colegas de escola, testemunhas mais ou menos privilegiadas e cineastas desfilam pela tela, oferecendo sua admiração como um tijolinho na edificação desse muro em que o maestro é pintado como gênio incontestável. Bernardo Bertolucci, Dario Argento, Clint Eastwood, Quentin Tarantino, Oliver Stone, Wong Kar-Wai e Barry Levinson, entre outros, dizem que Morricone foi fundamental em processos emblemáticos de suas carreiras, o que ajuda a dimensiona-lo.

Além dos cineastas filmados em depoimento, Giuseppe Tornatore ainda recorre ao material de arquivo para ter as palavras de Terrence Malick, Sergio Leone, entre outros. O pai do spaghetti western é uma peça vital. Sim, pois foi nas trilhas sonoras dos faroestes de Leone que Ennio Morricone começou a cunhar um caminho sólido como compositor de trilhas sonoras de cinema. Se há algo de muito interessante em meio à progressão tradicional e pouco propícia aos pormenores é Tornatore mostrando reiteradamente a disposição do protagonista a reivindicar a assinatura de seus trabalhos. “O diretor controla tudo, menos a música”, afirma o biografado, em certo sentido, arrematando essa observação de um traço autoral profundo que não sucumbiu nem mesmo diante das súplicas e ordens incessantes de nomes proeminentes da Sétima Arte. Mas, voltando aos desperdícios, Ennio, O Maestro apenas sugere uma dinâmica que poderia ser mais bem desenvolvida, isso se o conjunto não fosse um acúmulo de informações e depoimentos elogiosos. E tal lógica é transferência ao professor Goffredo Petrassi de uma expectativa filial anteriormente mal elaborada na relação que Morricone teve com o pai trompetista. Tanto que, mesmo após se tornar um artista reverenciado, Morricone ainda sentia a pressão da não aprovação do seu rígido e desconfiado mestre. Mas esse espelhamento é somente provocado.

Ennio, O Maestro tem momentos emocionantes. Mesmo que, basicamente, articule os procedimentos formais e estéticos que o assemelham a uma reportagem jornalística (roteiro, fotografia, depoimentos, etc.) , o filme contextualiza o mito e o revela. Os instantes apelativos à emoção são aqueles em que o homem cultuado por homens cultuados deixa escapar lágrimas ao se recordar de determinadas passagens de sua vida – do encontro com alguém querido, do término de um trabalho satisfatório, do amor nutrido durante a vida toda pela abnegada esposa Maria, etc. Sim, pois o longa-metragem soma os depoimentos do próprio Ennio Morricone ao mencionado material de arquivo e aos testemunhos dos amigos/colaboradores/admiradores. Desse modo, é como se Giuseppe Tornatore renunciasse um pouco ao direito de oferecer uma perspectiva singular sobre o gênio, criando assim um espaço suficientemente confortável para ele próprio contar a sua história, sem contratempos e/ou contradições. Pode-se fazer objeções a essa posição, sem dúvida, a essa abdicação de uma voz e de um olhar externos que pudessem oferecer matizes sobre esse protagonista festejado. No entanto, é como se Tornatore aceitasse a submissão de seu prisma à admiração sentida pelo maestro que revolucionou a música no cinema. Deve-se sempre questionar as escolhas, mas há algo de muito bonito nessa reverência.

Filmes assistido durante a 8½ Festa do Cinema Italiano, em julho de 2022.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *