Crítica

Por razões óbvias, a temática dos conflitos raciais se mostra uma característica indissociável à produção cinematográfica da África do Sul. Quando não abordam diretamente os acontecimentos históricos relacionados ao regime do Apartheid, os filmes sul-africanos geralmente apresentam tramas que ecoam as consequências de tais fatos e, no caso de Eles Só Usam Black Tie, não é diferente. Em seu primeiro longa-metragem, o diretor Sibs Shongwe-La Mer trabalha estes elementos sob uma perspectiva menos usual, trocando o ponto de vista das classes oprimidas e do retrato das periferias pelo da juventude abastada de Joanesburgo nos dias atuais. A história acompanha um grupo de jovens de classe média e alta, com destaque para Jabz (Bonko Cosmo Khoza) e September (o próprio Shongwe-La Mer), ainda buscando assimilar o suicídio de uma amiga, Emily (Kelly Bates), um ano após a tragédia.

Referenciando o passado ao situar a morte da garota – se enforcando no quintal da mansão dos pais num ato transmitido ao vivo pela internet – no dia 16 de junho, data do violento episódio do Levante de Soweto, ocorrido em 1976, Shongwe-La Mer se volta para sua própria geração, dedicando o longa aos nascidos em 1991, para traçar um panorama nada animador da mesma. O cineasta apresenta seus contemporâneos como herdeiros do otimismo e da esperança nunca plenamente concretizados do pós-Apartheid, que sofrem com a ausência do senso de pertencimento. Julgando-se deslocados e carregando o peso da responsabilidade de construírem o futuro neste novo cenário social, conquistado através da dura luta de seus ancestrais, os personagens são abatidos pela desilusão e pela incerteza sobre a causa que devem defender, especialmente não tendo mais um símbolo de liderança como Mandela.

Shongwe-La Mer mostra que resquícios da segregação permanecem, ainda que de forma mais velada, pois, mesmo pertencendo às camadas mais altas da sociedade, Jabz e September enfrentam os olhares atravessados de brancos e até mesmo de outros negros, como o segurança da farmácia, que suspeita que tenham roubado o local, ou os traficantes do subúrbio, que enxergam um ar de superioridade emanando dos protagonistas. Essa tensão racial também se estende ao relacionamento envolto em sigilo entre uma garota branca e um rapaz negro e ao comportamento de duas amigas judias, que não sabem se seus pais reagiriam pior ao fato de manterem relações lésbicas, interraciais ou simplesmente com homens não judeus. Assim como a dupla principal, todos os outros personagens exibem um vazio existencial que buscam preencher com drogas, álcool, música e sexo.

A intenção de Shongwe-La Mer é imprimir um tratamento cru e visceral ao relato dessa rotina desregrada, que inevitavelmente remete ao cinema do norte-americano Larry Clark e sua obra mais notória, Kids (1995). A abordagem do sul-africano, porém, acaba sendo menos explícita que a de Clark, apresentando também pretensões mais poéticas, algo evidenciado pelo uso da fotografia em preto e branco, com a qual o cineasta compõe alguns belos enquadramentos, e que ameniza o realismo para conferir uma qualidade lírica às imagens. Percebe-se uma clara adesão ao experimentalismo de linguagem, denotando influências de Jean-Luc Godard a Jim Jarmusch e Spike Lee, com a inserção de letreiros com os nomes dos personagens – como que dividindo o longa em capítulos – ou legendas em hebraico nos diálogos das garotas judias.

Esteticamente, Eles Só Usam Black Tie também traz à memória o francês O Ódio (1995), de Mathieu Kassovitz, outra representação urgente da inquietação juvenil, ainda que em realidades distintas. No entanto, falta ao trabalho de Shongwe-La Mer – que além de ator e diretor acumula ainda as funções de roteirista e montador – a mesma segurança narrativa de Kassovitz. A improvisação dos diálogos, com visível liberdade dada aos intérpretes, confere um tom naturalista às ações, mas também revela a fragilidade e banalidade de boa parte do conteúdo, ressaltadas pelas atuações irregulares do elenco majoritariamente amador. O excesso de personagens gera certa desorientação, bem como o acúmulo de ideias – como abrir lacunas confessionais através dos depoimentos dados à equipe de um falso documentário sobre o suicídio de Emily ou as narrações em off sobre imagens de uma Joanesburgo quase distópica.

Em meio a essa efervescência de conceitos, algumas reflexões contundentes se sobressaem, como a percepção dos jovens de que, mesmo convivendo diariamente, pouco conhecem uns aos outros – como muitos revelam aos documentaristas não saberem realmente quem era Emily – já que não compreendem ao certo nem mesmo a própria identidade, não se reconhecendo nas figuras de seus pais, por exemplo. Mas a sensação recorrente de aleatoriedade das sequências expostas minimiza essa força reflexiva, assim como o pessimismo demasiado refletido nas atitudes cada vez mais autodestrutivas de Jabz – se envolvendo em uma briga na loja de bebidas, consumindo comprimidos irrestritamente. Desta forma, Shongwe-La Mer encaminha seu filme para um desfecho que parece inevitável, impregnado de um fatalismo do qual nenhum de seus personagens se mostra capaz de escapar. Em sua ânsia por radiografar uma geração perdida, o próprio cineasta termina não se mostrando totalmente convicto sobre o melhor caminho a seguir.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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