Crítica


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Sinopse

Um rapaz feito de água e uma moça feita de fogo descobrem que têm muito mais afinidades do que imaginavam.

Crítica

Foi-se o tempo em que cada lançamento da Pixar era um evento aguardadíssimo. Do ponto de vista comercial, talvez para alguns as estreias do estúdio da Disney ainda sejam consideradas excepcionais, sobretudo num mercado inflacionado por concorrentes genéricos. Mas, não é de hoje que as produções com esse selo têm deixado a desejar cinematográfica e artisticamente. A nova aposta da Pixar é Elementos, cuja história recicla a premissa shakespeareana de Romeu e Julieta ao mostrar um amor improvável entre seres de naturezas opostas. Numa realidade em que os viventes possuem características elementares (terra, fogo, água e ar), Faísca é a filha do casal que migrou de sua terra natal à metrópole onde a população é numerosa e múltipla. Então, a família de imigrantes deixa o conforto da comunidade em que todos são literalmente feitos de fogo e passa a viver na cidade grande e hiperconectada, em que a sua gente é encarada como potencialmente perigosa – pois um simples toque deles pode causar danos nos demais moradores. Escancarada como metáfora de uma das principais crises sociais da atualidade, essa situação é simplesmente subordinada ao tema do romance. Aliás, o maior problema do roteiro assinado por John Hoberg, Kat Likkel e Brenda Hsueh é essa hierarquização. Por um lado, o enredo subaproveita contexto e subtextos e, por outro, valoriza discursos amorosos idealistas. Nada além do romance fofo entre Faísca e Gota (ele é feito de água) ganha tanta importância.

O cineasta Peter Sohn enxerga esse painel social como um terreno passível de provocar reflexões relevantes – sendo a fábula uma embalagem simbólica que atribui tintas e timbres lúdicos aos componentes universais. Porém, ele não demora a se render ao bom e velho apelo meloso dos amores transformadores que encorajam hesitantes em luta contra as próprias limitações. Nem a marginalidade dos cidadãos de fogo e tampouco o senso de comunidade que eles desenvolvem em torno do bar do pai de Faísca é estruturado. No fim das contas, esse dado é utilizado de modo esquemático para distanciar ainda mais a menina de cabeça quente do aquoso nascido num ambiente economicamente bem mais confortável. Aliás, não basta esses amantes serem efetivamente perigosos um ao outro (ele evapora perto dela; ela pode ser apagada perto dele), pois as distâncias ainda dizem respeito aos estratos sociais aos quais ambos pertencem. No entanto, a pergunta é: faz muita diferença esses impeditivos todos? Na verdade, não. Coisas como o estrangeirismo, o preconceito, a diferença de tratamento familiar, a frieza da burocracia que sempre joga contra os oprimidos, tudo isso não passa de itens de decoração. Diferentemente de outras obras da Pixar, em que a melancolia, a frustração, a dor da perda e demais barras pesadas eram encaradas com seriedade, aqui nada tem tanta importância quanto a genérica jornada de aprendizado que une gradativamente esses amantes adoráveis e frágeis.

As mudanças abruptas de direção da trama são problemáticas em Elementos, pois ressaltam essa disposição do filme por simplificar convenientemente circunstâncias complexas. Faísca está às voltas com as enormes consequências de seus atos, lutando contra normas locais para evitar o fechamento do negócio tradicional de sua família. De uma hora para outra, sem qualquer justificativa plausível, ela revela que sua angústia vem do fato de não querer assumir o comércio que o pai vai lhe transferir como herança. De modo semelhante, Gota é apresentado como um funcionário atrapalhado e frágil, mas lá pelas tantas, e também repentinamente, ele se transforma num corajoso pilar à caminhada de sua amada em crise. Essas alterações súbitas e pouco orgânicas de comportamento têm um álibi fraco, exatamente o amor. O cineasta Peter Sohn submete tudo ao idealismo romântico que prega coisas como: grandes obstáculos podem ser removidos de modo relativamente simples se as pessoas estiverem de peito aberto à paixão. Em meio ao desenho de uma afinidade bonita entre Faísca e Gota, até as anomalias da cidade que trazem de volta as enchentes às áreas destinadas aos cidadãos de fogo são completamente negligenciadas. De onde elas vieram? Quem as provocou? Não sabemos. O que se destaca é a construção de um trajeto suficientemente acidentado a fim de transformar o romance no troféu concedido aos persistentes e corajosos que ouvem o coração. Realmente, se foi o tempo em que a Pixar era comprometida com histórias de panoramas emocionais e psicológicos densos.

Elementos é visualmente muito bonito. A metrópole onde a trama se desenrola é um lugar cheio de personagens conceitualmente inventivos, produtos do estúdio notabilizado por ser um celeiro de criatividade. A excelência da animação, outra marca registrada da Pixar, também está presente mais uma vez. No entanto, ainda o longa-metragem tenha figuras cativantes e se desenvolva a partir de um amor daqueles que nos convocam à torcida, as potencialidades do entorno e do contexto são desperdiçadas em função do romance anacrônico, semelhante ao de alguns contos de fadas clássicos da Disney. Faísca e Gota cumprem as etapas intermediárias à declaração de uma conexão insólita. Os diálogos são lotados de trocadilhos com os elementos, alusivos ao panorama sentimental que os protagonistas ajudam a revelar. Sem a elaboração devida, a imigração e a discriminação são comparadas ao vazamento da tubulação, ou seja, basta que se coloque um tampão no problema para ele desparecer. E, ainda que a nota final dessa crítica seja positiva, o tom negativo do texto reflete mais a decepção em comparação à Pixar de antigamente, àquela que produzia filmes notáveis em sua linha de montagem. Os mais bem-sucedidos trabalhos do estúdio não infantilizavam sequer suas produções voltadas a um público infantil. Já esse filme simplifica as situações e enfatiza a supremacia do amor romântico.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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